Eliana Caminada
20 de setembro de 2016 às 19:06 ·
Hoje fui assistir a um ensaio de palco de Shéhérazade e fiquei refletindo sobre a imensa dificuldade de dançar uma obra tão paradigmática dentro da história do ballet do século XX. Um ballet estilístico em que a grande dificuldade representa, não o treinamento técnico do bailarino de hoje, mas, ao contrário, expressar o que consideram simples e fácil.
O virtuosismo do século XXI não serve para nada diante da necessidade da sensualidade, da sinuosidade, dos cambrés e épaulements de cada elemento em cena. Esse é o momento de comer o remontador com os olhos e os ouvidos, de forma a conseguir expressar através do corpo uma época de busca, não apenas de passos novos, mas de um novo espírito, de movimentos inusuais, novos e complicados sim, para nós. É necessário tentar conhecer um momento extraordinário, em que o ballet rompia com seus modelos já consagrados e esgotados para sobreviver como uma arte maior, indicadora de novos caminhos, de novas concepções de criações e espetáculos.
Mikhail Fokine não foi tão somente um novo coreógrafo surgido do seio da grande arte russa da dança, com sólida formação acadêmica e bagagem artística. Ele foi um revolucionário, um farol que percebeu que um novo tempo havia chegado. Suas ideias sobre a dança (“… o ballet deve ter uma unidade completa de expressão, uma unidade composta da união harmoniosa dos três elementos – música, pintura e a arte plástica … a dança deve ser interpretativa, deve explicar o espírito e jamais degenerar em meros movimentos de ginástica …”) precederam até mesmo a ida de Isadora Duncan à Rússia, embora seja indiscutível que a liberdade de dança de Isadora lhe provocou imensa perplexidade.
As ideias de Fokine se realizariam plenamente nos Ballets Russes de Sergei Diaghilev. Com Diaghilev el entrou em contato com a intelectualidade francesa e essa erudição estaria sempre presente em sua obra.
Vou me permitir, aqui, reproduzir os cinco pontos de Fokine publicou em Londres em 1914 e que o tornaram o “pai da moderna concepção de espetáculos cênicos”. São eles:
1. Conceber, para cada coreografia, movimentos que correspondam ao tema, período e música ao invés de apenas formular combinações de passos tradicionais.
2. Gestos e mímicas só têm sentido no ballet moderno, quando a serviço da ação dramática.
3. O corpo do bailarino deve ter expressividade da cabeça aos pés, sem pontos considerados mortos. No ballet moderno, os gestos de dança clássica somente se justificam quando o estilo o requer.
4. O conjunto não é meramente ornamental; a expressão corporal é necessária tanto nos solistas quanto no conjunto quanto na totalidade dos participantes que se movimentam em cada cena.
5. A dança deve permanecer em condição de igualdade com os demais fatores do ballet. Estes não devem mais se impor à dança nem deve a dança ser independente. Música de “ballet” não mais existe mas simplesmente música, boa música. Eliminem-se “tutus”, sapatilhas e malhas cor de rosa sem sentido cênico ligado à obra. Tudo deve ser inventado a cada instante, ainda que as bases da invenção estejam estabelecidas numa tradição centenária.
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