Dança da vida, dança da morte


POR Henrique Marques Samyn – FILÓSOFO e ensaísta, tem vários artigos sobre arte e cultura publicados em revistas especializadas.

 
O filósofo Arthur Schopenhauer, um dos maiores pensadores do século XIX e   grande influenciador do Nietzsche de O   Nascimento da Tragédia, escreveu:

Se o sentido mais próximo e imediato de nossa vida não é o sofrimento, nossa existência é o maior contra-senso do mundo. Pois constitui um absurdo supor que a dor infinita, originária da necessidade essencial à vida, de que o mundo está pleno, é sem sentido e puramente acidental. Nossa receptividade para a dor é quase infinita, aquela para o prazer possui limites estreitos. Embora toda infelicidade individual apareça como exceção, a infelicidade em geral constitui a regra.
Talvez mais próximas de nós, mas com o mesmo espírito, sejam as geniais citações de Samuel Beckett. Lembremo-nos, por exemplo, da citação conclusiva de The End:
A memória tornou pálida e fria a história que eu posso ter contado, uma história que é um retrato de minha vida, sem a coragem de terminar nem a força para seguir em frente.
Citações como estas, se por um lado soam negativas e sombrias aos nossos ouvidos, por outro lado nos atraem por trazerem um certo… “realismo”. Realismo este que, na verdade, sempre acompanhou a humanidade, e vez por outra se mostra de modo mais explícito – sobretudo quando surge uma voz que grita, em alto e bom som, as verdades desse lado da vida que nós nos recusamos a encarar de frente.
Exemplos disso, aliás, não nos faltam. Tivemos movimentos artísticos inteiros que se devotaram a recuperar esse lado obscuro da vida que tentamos ignorar. Na história do Ballet, podemos nos lembrar, por exemplo, do Romantismo. Tanto Giselle como La Sylphide são obras imortais e absolutamente atemporais; mas parte do que a elas confere esse lugar magistral na história da arte é justamente o conjunto de temas que abordam. Em ambas as peças temos, de um lado, o simbolismo implícito da floresta, que sempre representou para o ser humano o desconhecido, o perigoso, o sombrio – mas que, ao mesmo tempo, é um símbolo do inconsciente: ou seja, do que é perigoso e sombrio dentro de nós. E temos, por outro lado, o simbolismo explícito da morte, tão presente nas duas peças de maneira belíssima.
Não parece contraditório que temas que nos inspiram tanto receio nos causem, ao mesmo tempo, tanta fascinação? Ou, mais ainda, que sejam a matéria prima de obras de arte de valor ienstimável? E há inúmeras outras obras em que o tema da morte está presente também de um modo decisivo: no Werther de Goethe, nos quadros de Munch, nos poemas de Álvares de Azevedo –
E o que resta? Uma sombra esvaecida,

Um poeta triste que sem mãe agonizava…Resta um poeta morto!
O que pensar sobre este estranho paradoxo?
A morte parece causar-nos uma dupla impressão: por um lado, é uma realidade inevitável sobre a qual muitas vezes preferimos não pensar; por outro, está cercada de tamanho mistério e desconhecimento que se tornaimpossível deixar de pensar nela.
Como resolver este impasse? A morte é a sombra terrível que nos assombra ou a presença poética e misteriosa que nos seduz?
Talvez não seja nem um nem outro – ou talvez seja uma escolha nossa privilegiar um ou outro… será que é como escreveu Yeats – o homem criou a morte?
As Mortes de Dionísio

Quando Nietzsche analisa a morte da Tragédia, em sua obra inicial, ele aponta como seu frio assassino Sócrates – e, como seus seguidores, todos os seguidores da tradição cristã que até hoje nos cerca. Socratismo e cristianismo são irmãos em um mesmo universo niilista – um universo de negação da vida, de racionalismo estéril, de virtudes ilusórias.
Segundo Nietzsche, antes de Sócrates e Eurípedes a arte grega nascia do entrelaçamento de dois princípios: de um lado, o dionisíaco; de outro, o apolíneo. O dionisíaco é a arte sem forma, pulsante, descontrolada; oapolíneo é a arte plástica, onírica, ética. Quando Sócrates surge, o dionisíaco passa a ser ignorado – todas as preocupações voltam-se apenas ao que é inteligível e racional; e, com isso, Dionísio é expulso da arte. Se Sócrates soubesse o quanto teríamos de pagar por isso!

Nas palavras do próprio Nietzsche, o problema está em que o cristianismo é uma “contradição da natureza”. Não só pelas censuras à sexualidade, pelas noções de culpa e pecado, mas também por sua própria concepção da vida como algo que exclui a morte. No cristianismo, a morte é sempre acompanhada com pesar, sofrimento e dor; não é uma experiência que seja percebida como fazendo parte da própria vida, mas uma espécie de exceção – uma “passagem para uma outra vida”. Em outras palavras, só a vida é aceita – a morte é sempre negada, expulsa, ignorada.

Seguindo estes passos, toda a civilização ocidental, com suas sempre presentes raízes judaico-cristãs, criou um estilo de vida parecido: a morte transformou-se em uma “exceção”, em algo sombrio e pesaroso. Sua presença só é aceita no domínio da arte – mas também porque a própria arte é tratada como marginal por nossa cultura, que distanciou a arte da vida a um ponto tal que a confunde com o mero entretenimento. Ouse-se falar da morte e da arte a sério, como o fez Schopenhauer! Em sua filosofia, o núcleo do mundo é a dor – e um dos únicos caminhos para sua superação, ainda que temporária, é precisamente a arte. Justamente por isso, tanto ele quanto Nietzsche, durante longo tempo seu discípulo, são ainda considerados “malditos” em nosso mundo; afinal de contas, como uma mente cristã pode aceitar que se fale sobre tais assuntos?
Tudo isso, no entanto, não passa de um resultado da expulsão de Dionísio. Se voltarmos nosso olhar à Grécia dionisíaca, em seu período trágico, veremos que tudo isso que hoje foi banido estava presente na vida desses nossos antepassados; em verdade, a morte e a arte estão diretamente relacionadas a Dionísio – e jamais como algo sombrio ou doloroso, mas sempre como componentes de todo o universo de êxtase que é a própria existência.
Dionísio era um deus do campo, diretamente relacionado à vegetação – e, como ela, morria e renascia ciclicamente. Uma das festas dionísicacas, as Antestérias, que aconteciam no final de fevereiro, era marcada justamente pela presença dos mortos, cujo soberano era Plutão – o “rico por excelência”.  O próprio Hipócrates, patriarca da Medicina, dizia que é dos mortos que nos vêm os alimentos e o crescimento; e Sileno, companheiro de Dionísio e rei dos Sátiros, certa vez afirmou a Midas que a melhor coisa que o homem pode desejar é morrer o quanto antes. Como podemos entender tanta alegria e riqueza vinculados à morte?
A chave está na compreensão da morte como libertação da individuação. Enquanto vivemos, estamos o tempo todo presos aos nossos “eus” – a nossos desejos, ansiedades e necessidades. Schopenhauer, aliás, situava o sofrimento da vida humana nesses desejos inesgotáveis. Segundo ele, vida é sempre uma infelicidade porque estamos sempre oscilando entre o sofrimento e o tédio: estamos sempre sofrendo por desejarmos algo que não temos; quando conseguimos o que queremos, nos entediamos por não termos mais objetivos, e passamos a desejar algo novo – e assim este ciclo se repete em um círculo vicioso sem fim. No entanto, o que está na raiz disso tudo é a idéia de um “eu”. Estamos sempre pensando nos termos de “eu quero isso”, “eu desejo isso”; nos colocamos no centro do mundo, e passamos a julgar que tudo gira ao redor de cada um de nós. O mundo fica, então, reduzido a uma infinitude de pessoas solitárias, cada uma preocupada com seus próprios desejos e necessidades.

No entanto, nenhum desses males afeta os mortos. A morte, ao nos libertar desse “eu”, aniquila também os desejos e sofrimentos que nele tinham seu centro. Mas isso quer dizer que temos que morrer para ser felizes? Não! A chave está, precisamente, na arte.

Os Dançarinos Bacantes

“Bacante”, em grego, quer dizer “tomado de delírio divino”. Na Grécia, os seguidores de Dionísio buscavam sempre o ékstatis, um estado de embriaguez divina onde se atingia uma semi-inconsciência – um “sair de si”, onde a individualidade se dissolvia no seio de Dionísio.
Esse estado de êxtase, que na verdade tomava todos os seguidores de Dionísio, representava um estado de libertação suprema – não havia mais “eu”, porque todos estavam mergulhados no próprio Dionísio, e fundiam-se com ele em uma única essência.  Em outras palavras, desaparecia a linha divisória entre o homem e a divindade – e, através da dança, o homem se tornava Deus.
Era nesse momento de catarse, de alegria infindável, que os dançarinos atingiam a maior de todas as liberdades: em um nível mais baixo, era a libertação das normas sociais – se na sociedade ateniense a mulher era sempre reprimida e humilhada, nas festas de Dionísio elas podiam vencer e superar todas essas barreiras: não à toa, as mulheres gregas compareciam em multidões às festas dionisíacas – só Dionísio podia conceder-lhes a liberdade que a sociedade lhes negava.

Mas, em um nível mais alto, as festas de Dionísio representavam uma superação suprema de toda a vida e toda a morte – nesse transe orgiástico, as Bacantes muitas vezes, dançando, dilaceravam animais vivos em um sacrifício divino. Isso representava, em uma esfera mítica, o dilaceramento do próprio Dionísio pelos Titãs; e, na esfera existencial, a própria comunhão do homem com a natureza, com seu ciclo de eternas mortes e renascimentos. Assim, aquilo que poderia ser considerado profano – a morte, as orgias, o sofrimento –, era elevado a um nível divino pela presença dos próprios Dançarinos de Dionísio.

Os Dançarinos de Dionísio – seus adeptos e as Bacantes – eram considerados tão assombrosos e perigosos na própria Grécia que não foram, durante muito tempo, admitidos em Atenas. Dionísio era temido pelos próprios Deuses Olímpicos: era considerado subversivo, libertário, anárquico – e, por isso, durante longo tempo ficou confinado aos campos, a uma “distância segura” das cidades. Quando ele finalmente ultrapassou as muralhas de Atenas, só foi permitido que essas festas, tão perigosas para a ordem social, fossem realizadas uma única vez por ano. Não seria por esse mesmo motivo que, ainda hoje, a Dança é sempre mantida à parte do convívio social – confinada aos teatros e espetáculos dos fins de semana…?

Mergulhando em Dionísio

Se Dionísio relaciona-se à morte, é preciso ressaltar que ele não é a morte – o que ele representa é o círculo de nascimentos e renascimentos, ou seja: os caminhos que da morte levam à vida – e a inevitabilidade de que a vida culmine em morte. Por isso Plutão, o filho de Deméter e Iásion, possui tanta riqueza – a ele se adequa a imagem da semente, que precisa morrer para que nasça a árvore.
Vida e morte, revelando-se como duas faces da mesma moeda, são então aspectos fundamentais do que os antigos gregos chamavam de physis – a força primordial que cria e gera tudo o que existe. Sem morte, não há vida – sem vida, não há morte: como disse Heráclito, nós vivemos a morte das almas e elas vivem a nossa morte. O que devemos fazer, então, é aceitar e abraçar este ciclo: superar, ao mesmo tempo, a vida e a morte através disso que as transcende – que é a Dança. Para a Dança, não há vida ou morte – ela é a própria transcendência: ela é o Dionísio que vive, morre e renasce, mas mantém-se sempre o mesmo!

Foi por ter percebido isso que Nijinsky pôde escrever, em seus Cadernos,  estas palavras:

Tendo vencido a morte pela morte

Eu sou morte e não és vida.

Vida é vida, morte é morte.

Tu és morte, e eu sou vida.

Tendo vencido a morte pela morte.

Eu sou morte e não és vida.

Quero dizer que tu és morte, e eu sou vida.

Quero dizer que eu sou vida, e tu és morte.

Por trás destas palavras, por trás de cada vez em que Nijinsky afirmava ser Deus, repousava uma mesma verdade: a superação, pela arte, da vida e da morte. A arte é transmutadora: vence a morte pela morte – como a Giselle que, morta, pode salvar a vida de Albrecht! A arte – e só a arte – pode fazer nascer, da morte, uma nova potência criadora; só ela pode transmutar a morte em poesia – como na Morte do Cisne
E, da mesma forma, na Dança é preciso que o dançarino abrace a morte para que em seu lugar nasça Dionísio – e, depois, renasça, como o próprio Dionísio o fez.
Libertemos, então, nossas próprias vidas da sombra da morte: libertemos as Giselles, os Faunos , as Kitris – tornemo-nos Dionísio!
A única forma de transcender a morte é transformar em obra de arte nossa própria vida – ou seja: renascer em Dionísio, transformando cada passo de nossa existência em uma nova Dança.

RIO de Janeiro, 1999

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