Archive for maio \02\+00:00 2012

Escola Estadual de Danças Maria Olenewa

maio 2, 2012

COMO O BALLET CHEGOU AO BRASIL

O Rio de Janeiro não conhecia ballet, nunca tinha ouvido falar nessa dança?

Bem, passando ao largo das propostas dos que sugerem que o ballet chegou ao Brasil como um projeto de colonização das terras do Novo Mundo ou como modelo de encenação dos Autos de Fé dos jesuítas, a sua presença, historicamente registrada em livros, nos dá conta de que a dança clássica chegou à cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX, no rastro da Família Real.

Por que?

Respeitada ou não, amada ou não, tivemos uma corte europeia e com ela as tradições que lhe eram próprias. Os espetáculos de ballet ou com ballet compunham o ritual de todas as cortes e não foi diferente entre os portugueses. Ao se transferirem para o Brasil mantiveram as encenações baléticas que permaneceram, para sempre, um complemento dos costumes de parte da sociedade carioca, encenados, sem interrupções, do século XIX aos nossos dias.

Mil oitocentos e dez marca a chegada do primeiro maestro de danças ao Rio: Pedro Colona, como responsável pelos espetáculos na Capela Real. Mas é com a chegada de Louis Lacombe, em 1811, que acontecem mudanças significativas nos costumes da rudimentar sociedade da Capital. Pela primeira vez aulas de danças sociais são abertas ao público. É desse ano o registro do primeiro espetáculo cênico de dança e música, “I Due Rivali”, coreografo por Lacombe sobre composição de Marcos Portugal.

A chegada de Auguste Toussaint, bailarino da Academie de l’Opéra e do Théâtre Porte Saint-Germain, em 1815, para trabalhar em conjunto com Lacombe, também merece ser registrada.

Nas festas da consagração de d. João VI como rei de Portugal e Algarves, em 1818, Lacombe apresentou “O Triunfo do Brasil ou Elogio”, com cenários do célebre artista plástico Jean Baptiste Debret.

Em 1825 ele que, nove anos antes fora nomeado compositor de danças, com um contrato como professor e coreógrafo bastante abrangente, é promovido a mestre de danças da Casa Real.

No ano seguinte, encarregado pelo célebre ator João Caetano, Toussaint apresentava a Companhia Francesa de Ballet. Era o primeiro corpo de baile formado por estrangeiros a residir na cidade, contratado para abrilhantar as peças do grande ator. Outro conjunto seria contratado em 1838 e atuou até 1841.

Porém, as datas que mais surpreendem são, sem dúvida, 03/11/1848, estréia de “La Sylphide”, e 23/07/1849, estréia de “Giselle”, apresentando nos papéis principais das duas obras Ana Trabattoni e Eugène Finart.

Frise-se que os ballets foram apresentados completos, com grande elenco e os efeitos cênicos exigidos.

Adoecendo Ana Trabattoni dançou em seu lugar a “Prima danzatrice del Teatro Alla Scala” Maria Baderna, discípula dileta do célebre Carlo Blasis.

A palavra “baderna”, com esse sentido de confusão, arruaça, só existe no português do Brasil. Isso por causa dos partidários de Maria Baderna. Apaixonada por ela, a juventude da época passou a provocar brigas de rua em defesa de suas atuações, formando quase que um partido: os badernistas. Foram eles que contribuíram para que o sobrenome da ousada bailarina, que teria sido a primeira a dançar um lundu no palco, entrasse para o dicionário Aurélio.

Em pleno século XIX, uma bailarina se torna tão popular que deixa seu sobrenome como legado para nosso idioma. Isso não representa alguma coisa?

Em 1883 acusa-se a presença da Casa Real na estréia de “Excelcior”, uma espécie de ballet/musical que colocou em cena, aqui, 345 artistas.

Creio que podemos considerar que parte da curiosidade de nossa internauta está atendida.

E como chegamos à criação da Escola de Danças?

Os primeiros anos da República não privilegiaram muito a dança, em geral presente apenas em espetáculos líricos.

Mas, quem sabe, a universalidade da dança acadêmica já conquistara um segmento da sociedade que vivia na única cidade realmente cosmopolita do Brasil de então: o Rio de Janeiro.

Determinadas academias acanhadas lograram sobreviver. Algumas famílias levadas pela influência europeia, outras pela vaidade de mostrar as filhas com “uma postura elegante” colocavam-nas nas aulas de ballet. Constituíam-se numa elite chique e sofisticada. Na década de 20, clubes como o Fluminense e colégios como o Anglo Americano ofereciam aulas a jovens que eram, em geral, levadas por suas preceptoras exclusivamente com essa finalidade; sequer estudavam fora de casa. Dentre os professores destacavam-se Ricardo Nemanoff, Vera Grabinska e Pierre Michailovski.

Enquanto isso o Rio modernizava-se. O Theatro Municipal, construído em 1909, embora não tivesse contado com ballet em sua inauguração, quatro anos mais tarde, em 1913, recebera para inesquecível temporada os célebres “Ballets Russes de Diaghilev”, apresentando todas as suas grandes estrelas, inclusive o mítico bailarino Vaslav Nijinski.

Data desse ano a primeira tentativa, mal sucedida, de criação de uma escola de danças na cidade.

Treze anos mais tarde, sem despertar o interesse do governo e do próprio público, as tentativas de Michailovski e Grabinska, e a de Julia Sedowa também fracassaram.

Entretanto, as companhias de ballet e de ópera continuavam a se apresentar no Municipal, ano após ano, com enormes e onerosos elencos, cujas despesas eram divididas pelos empresários com a cidade de Buenos Aires.

Em 1927, a russa Maria Olenewa, que já conhecia o Brasil, contando com o apoio incondicional do jornalista e crítico Mário Nunes, fez uma proposta que foi bem recebida pela Prefeitura da cidade. Por ela, a nova instituição cumpriria o papel de preparar bailarinos para a formação de uma companhia que atuasse nas óperas e apresentasse seus próprios espetáculos sem ônus para o governo. A Escola funcionaria nas dependências do Theatro Municipal. Em troca, Olenewa poderia usar essas instalações para as aulas da escola e para atender a alunos particulares, sua única maneira de sobreviver.

Uma conjugação de fatores contribuiu decisivamente para que Olenewa e Mário Nunes fossem bem sucedidos em suas demandas. Além do idealismo e da indiscutível competência de Olenewa, o Teatro Colón de Buenos Aires, desde 1925, estabelecera seus Corpos Estáveis – Orquestra, Coro e Baile – e elenco técnico. A partir de 1931 os espetáculos passaram a ser totalmente geridos pelo município, pertencendo ao Teatro Colón todos os integrantes, técnicos e artistas, das temporadas líricas ou de ballet.

Isto é: Ou acompanhávamos nosso vizinho portenho ou privávamos nossa alta sociedade de espetáculos de grande porte, justamente para os quais o Municipal fora construído.

Certamente, não por acaso, em 1931 foi criado em caráter permanente a Orquestra Sinfônica e a Escola de Canto Lírico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, pondo fim ao sistema de contratação de músicos avulsos que vigorara até então. E, concluindo-se que seria vantajoso, sob todos os aspectos, a Escola de Dança, cujos bailarinos já se apresentavam nas temporadas de ópera como profissionais, recebendo críticas dos maiores jornais do país, e que já contava com a simpatia do público, foi oficialmente reconhecida.

A oficialização do Corpo de Baile se deu em 1936, coroando de direito o que existia de fato desde 1927.

Mas, refletindo sobre o passado e como ele se configurara ao longo do tempo, especialmente durante os anos de 1927 até 1936, mais fundamental se apresenta para mim a figura de Olenewa.

Bailarina de carreira, com experiência internacional em companhias como as de Anna Pavlova e Leonide Massine, ela tinha suficiente bagagem artística e formação para saber que a Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de Janeiro era um meio e um fim ao mesmo tempo. Como as grandes cabeças de sua época – Ninette de Valois na Inglaterra em 1928, George Balanchine, ao fundar, em 1934, nos EUA, a American Ballet School – Olenewa tinha um plano: fundar uma Escola que preparasse bailarinos para uma Companhia resultante dela, e profissionais aptos a conduzi-la se e quando necessário. E tinha claro que o reconhecimento oficial desse trabalho dependeria de resultados rápidos.

Fora assim ao longo da história, com as grandes potências da dança acadêmica – França, Itália, Dinamarca e Rússia. Todos fundaram suas escolas das quais surgiram os Corpos de Baile e todos precisaram trabalhar com muita objetividade.

Nos cinco anos que separam o reconhecimento oficial da Escola e do Corpo de Baile Olenewa foi edificando seu plano.

Notem bem: As temporadas líricas eram imensas, compunham-se de inúmeras óperas. As exigências eram enormes. As meninas/bailarinas ainda estudavam, mas já trabalhavam muito. Os rapazes conseguiam seu ganha-pão trabalhando na noite. Mas umas e outros iam adquirindo experiência de palco, conhecendo grandes intérpretes líricos, aprendendo a apreciar partituras magníficas, formando-se, gradativamente, mais do que bailarinos, artistas cênicos.

Em 1932, em novos espetáculos e com repertório renovado, Olenewa mostra alunos/bailarinos com maior nível técnico e artístico.

Em 1933, já encontramos bailarinos, dentre os quais Luiza e Maria Carbonell, ostentando o título de solistas. A Yuco Lindberg é concedido o título de primeiro-bailarino. Nesse ano os bailarinos começam a receber salários, de acordo com depoimento da importante solista do Corpo de Baile Helga Loreida, que aos 88 anos conserva sua memória fantástica. Esse é um ponto delicado e importante sob o ponto de vista do nosso profissionalismo.

E chegamos a 1934. O Theatro passara por uma remodelação. Esperava-se para sua reabertura uma programação especial.

Mesmo assim fica difícil entender a presença de Serge Lifar no Brasil, contratado para a temporada lírica e de bailados.

Lifar era, naquele momento, possivelmente o homem de dança mais importante do ocidente. Ex-bailarino de grande destaque dos Ballets Russes de Diaghilev, assumira o posto de Diretor do Ballet da Ópera de Paris e reerguera a célebre companhia, até então, em franca decadência. Acabara de criar uma magnífica obra sinfônica: “As Criaturas de Prometeu” com música de Beethoven.

O que vinha fazer no Theatro Municipal, cuja companhia sequer era oficializada, um artista de tal envergadura?

Mas ele estava aqui acompanhado de apenas seis bailarinas e um bailarino. O conjunto formado por Olenewa completava o elenco.

Para essa temporada Lifar trouxe a mesma obra que tinha montado em Paris: “As Criaturas de Prometeu”. Para interpretar o papel de Terpsícore convidou a bailarina polonesa radicada entre nós Maryla Gremo, para quem se criou o cargo de primeira-bailarina. Maryla começava ali sua carreira com o Corpo de Baile.

Lifar montou igualmente o ballet “Jurupari”, que ele também dançou.

Não foi tarefa fácil para ninguém. Os bailarinos brasileiros ainda não estavam à altura de tão grande artista. Mas é fora de questão que a presença dele representara um grande estímulo e um grande aprendizado para todos.

O ano de 1935 começa a revelar a qualidade do trabalho de Olenewa.  Maryla Gremo e Yuco Lindberg recebem elogios por suas atuações; Madeleine Rosay e Itália Azevedo chamam a atenção como figuras talentosas e promissoras. Olenewa abre mão de dançar para dirigir e preparar artisticamente seus alunos/bailarinos. Até porque, rumores falavam numa possível profissionalização do Corpo de Baile.

Pela primeira vez é montado o pas-de-deux de “Giselle”, 2º ato, dançado por Gremo e Lindberg. Mais uma herança de Lifar, que o ensinara aos dois bailarinos.

Em visita ao Theatro, Bronislava Nijinska sugere a Olenewa a montagem de “Petroushka” e indica Madeleine Rosay para o papel de Bailarina.

Finalmente, em 1936 o Corpo de Baile é oficializado e desvinculado da Escola de Dança. No papel e no discurso, porque os integrantes da companhia, quase todos oriundos da Escola, por ela responderiam, sem interrupções, até pelo menos 1950. A bem da verdade foram eles, os bailarinos, que mantiveram vivas as duas instituições quando sugestões atrasadas e mal-intencionadas cogitaram dissolver ambos os setores.

O reconhecimento oficial, que nada mais fez do que dar um cunho burocrático-administrativo a uma atividade artística reconhecidamente atuante, premiou também a perseverança e o talento de nossos bailarinos e mestres pioneiros. “Juntos, eles construíram um dos patrimônios mais representativos da cultura nacional, legado preservado com brilho e declarado amor pelas várias gerações que os sucederam”. Certamente, muito teriam a contribuir, ao longo da história, com sua experiência, mas infelizmente essa colaboração foi dispensada sem que qualquer avaliação da real capacidade de cada um dos elementos fosse considerada.

Em 1937 Madeleine foi promovida a primeira-bailarina. Era a primeira brasileira a ostentar esse título. Sua carreira é um modelo de carreira de bailarino. Formada pela Escola, ela entrou para o Corpo de Baile, chegou a primeira-bailarina e retornou à Escola como diretora, tendo dirigido interinamente a companhia no ano de 1949.

Para nós tudo parece muito elementar, muito aquém do que se produzia no resto do mundo, mas basta pesquisar a história de outros povos, buscar seus registros em vídeos e fotos para se aprender a valorizar nossa própria história.

O que sempre nos faltou, de fato, foi autoestima, falta de apoio, desinteresse em registrar nossos feitos, progressos e imensos esforços, desprezo pela competência dos nossos artistas e pelo belo trajeto já percorrido.

Escolas de dança, aqui ou na Inglaterra, França, Estados Unidos, etc., é o  começo e o recomeço da carreira de bailarino. O aluno cursa a Escola, se forma e ingressa na companhia. Lá cumprirá seu trajeto de performer e retornará à Escola trazendo sua bagagem de bailarino, sua experiência com inúmeros maîtres-de-ballet, coreógrafos e ensaiadores, precisando, por outro lado, se atualizar, complementar sua cultura geral e se aprimorar para dar aulas, começando, assim, nova carreira, admirado por seus pares do Corpo de Baile, gratificado e remunerado pela nova vida que se inicia.

Onde essa nova vida o levará, somente a aptidão específica para essa ou aquela função, o ideal, o tempo, o esforço pessoal e o destino poderão saber.

Eliana Caminada

Rio de Janeiro, 27 de abril de 2012