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Novo presidente do Theatro Municipal do Rio: a palavra de Cora Rónai.

fevereiro 25, 2017

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Querida Cora, você não me conhece, mas me representa em quase tudo. Portentoso esse artigo que você escreveu ao Maestro Ripper na página dele mesmo. Entrei ali para postar minha solidariedade e lamentar tamanha idiotice, mas, diante de você, nada tenho a acrescentar. Apenas lamentar, também, que nenhum artista do Municipal tenha se manifestado em relação a demissão do Maestro Ripper. Como sempre, eles se omitem, seja por um papel, seja pelo salário em dia. Sei, ele sabe, você também, Cora, que estamos em enormes dificuldades, mas não foi o mérito dos artistas que os premiou com salário em dia, apenas conchavos políticos sujos, imundos. Por isso mesmo, não entendo a omissão, o medo de desagradar, a falta de reconhecimento. Cora, através de você quero dizer: Maestro, muito obrigada por sua gestão extraordinária, por sua capacidade, competência e honestidade. E, se em algum momento houver algum movimento de protesto contra sua saída, conte comigo em todos os níveis. Um abraço a ambos.

COM AUTORIZAÇÃO DE CORA RÓNAI
Cora Ronai
23 de fevereiro às 00:07 · Rio de Janeiro ·
É tanta coisa errada acontecendo ao mesmo tempo nessa cidade, nesse estado, nesse país, nesse mundo — e eu só não falo de outros mundos e do sistema solar e da galáxia e das outras galáxias todas porque me faltam elementos, mas tenho certeza de que há alguma coisa fora da ordem por lá também — que fica difícil escolher a pauta da indignação.

Não dá para falar de tudo o que me deixa indignada ultimamente porque tenho uma vida fora da indignação, uma vida que demanda certa atenção — almoçar, jantar, pagar contas, tomar banho, trocar lâmpadas.

Mas hoje estou revoltada com a saída do João Guilherme Ripper da direção do Theatro Municipal. Ripper é compositor e maestro, veio de uma administração muito bem sucedida na Sala Cecília Meireles e, junto com André Cardoso, estava fazendo milagres no Municipal, onde conseguiu produzir uma boa temporada de espetáculos em meio ao mais absoluto caos financeiro.

Tão absurda quanto a sua saída é o alegado motivo para a sua demissão: “popularizar” o TM.

O Theatro Muncipal não precisa ser “popularizado”.

O Theatro Municipal precisa, antes de mais nada, ser viabilizado.

O Theatro Municipal precisa de verbas, precisa de respeito.

Não pode ser mercadoria de troca política, um cacho de carguinhos no toma lá dá cá entre o governo e câmara.

Ele não é um “centro cultural” daqueles que os políticos inauguram às dúzias em qualquer garagem para dizer que estão fazendo alguma coisa pela cultura. Ele é uma máquina rara e preciosa, o coração tradicional da música clássica do Rio, a casa onde funcionam uma orquestra, um coro e um corpo de baile, grupos dedicados a um tipo muito específico de arte.

Precisa ser dirigido por quem conheça a área, por quem tenha experiência em tocar a complexa administração de um teatro assim, com todos os seus problemas técnicos, artísticos e humanos.

Um teatro como o Municipal se populariza, de verdade, com temporadas a preços acessíveis, e com a ampla divulgação do seu trabalho — e não com “investimento em música popular”.

A contratação de Milton Gonçalves, figura indiscutivelmente querida e carismática, não é “um tapa na cara da música clássica”, como já ouvi essa tarde. É um soco no meio da fuça, um jab demolidor que vai acabar de vez com um organismo frágil que se mantém a duras penas, ao custo do amor e da abnegação de equipes que vem trabalhando sem recursos e, nos últimos tempos, até sem salários.

Milton Gonçalves, como diz orgulhosamente o populista que o pôs no cargo, “é o primeiro presidente negro do Theatro Municipal”.

É importante isso, e há mérito nessa escolha.

Mas o problema é que o Municipal não se dirige com a cor da pele. O Municipal não precisa de um presidente negro, amarelo, cinza ou rosa choque. O Municipal precisa de um presidente — de qualquer cor, credo ou orientação sexual — que realmente viva e respire música clássica, e que tenha experiência na gestão de grandes teatros, ou a sua já precária estrutura desmorona de vez.

O resto é demagogia, e política da mais rasteira.

Reflexões sobre dança

fevereiro 18, 2017

Eliana Caminada

Há alguns meses do lançamento, pela Sprint, de meu livro sobre História da dança, comecei a refletir sobre o indeditismo de um trabalho de pesquisa, absolutamente teórico, ser apresentado ao público, por uma bailarina.

Sim, porque é lugar comum entre nós mesmo profissionais dessa arte tão bela e universal quanto ignorada, sobretudo daqueles que veem de uma formação específica acadêmica, a lamentável afirmação de que “bailarino não fala, dança”.

Embutida nesse preconceito, cultivado pela própria categoria e estimulado pelo processo histórico do nascimento do ballet, na sua origem uma arte elitista e diletante, insere-se a ideia de que esse artista também não deve pensar ou desenvolver reflexões sobre qualquer assunto que não se enquadre no conhecimento da técnica que precisa dominar corporalmente. A dança, defendem-se, exige muito mais do que as atividades normais de um ser humano: requer o preparo atlético do ginasta e a sensibilidade do artista; a disponibilidade do repórter e a criatividade do comunicador; o tempo de estudo do técnico altamente especializado e a espontaneidade do autodidata.

Certamente é verdade, mas não é menos verdade que não basta. Infelizmente, aceitemos ou não, apesar de a dança comunicar aquilo que transcende as palavras, os intelectuais e os poderosos não a compreendem; principalmente na sua forma cênica. Desconhecem, de fato, completamente, uma manifestação artística sobre a qual não possuem nenhum domínio, e talvez, por isso mesmo, tratam-na, então, como algo meio excêntrico, uma espécie de capricho ou habilidade de seres pouco dotados para o exercício do saber considerado formal, institucional, normativo.

Evidente que tal desconhecimento acentua o problema e dá margem a equívocos inadmissíveis. Talvez resida aí parte da responsabilidade pela exclusão da dança do processo histórico-cultural da humanidade. No nosso país, de forma acentuada, em nações mais evoluídas, com muito menos rigor, podendo chegar a desempenhar o papel, politicamente fundamental, de integrar ou reintegrar nações, momentaneamente excluídas da comunidade internacional.

É normal confundir-se dançarino profissional com estudante de ballet. Banalmente ouve-se ou lê-se nos mais diversos meios sociais e veículos de comunicação, que tal ou qual pessoa foi “bailarino do Theatro Municipal do Rio de Janeiro”. Na realidade, a pessoa em questão foi somente aluna da Escola de Danças do referido teatro. Jamais atuou profissionalmente; inúmeras vezes sequer se formou. Afinal, trata-se de um longo curso, com duração de nove anos; nem todos os que por ali passaram tiveram vocação e talento para prosseguirem com uma carreira que envolve um grande despojamento e até certa dose de “atitude devocional”, na sua prática.

O aspecto transitório da dança, que a exclui da categoria das Belas Artes, facilita os argumentos de todos os que acusam a coreografia, isto é, a composição de movimentos que usa o próprio corpo humano como matéria-prima, de estar superada imediatamente após ser criada. Não sabem da capacidade de a dança, justamente por seu processo intrínseco e dinâmico de evolução, manter-se permanentemente atual, ajustando-se às novas concepções de estética através dos tempos, revelando, por isso mesmo, épocas, estados de espírito, sensações, e tudo o que de mais profundo exista por trás do executante. Porque a dança é a arte da verdade. O corpo não é um pincel, uma caneta, um som, uma cor; ele escapa do controle do bailarino e trai, revela sua alma; o movimento atinge e coloca a descoberto regiões que pareciam tão bem escondidas, tão protegidas pelas defesas desenvolvidas pela educação formal, pelo estudo racional do personagem e pela instrução, quando ela existe. Sim, é possível encontrar-se um bailarino de grande personalidade cênica, sem que isso envolva, necessariamente, qualquer erudição. De onde vem esse saber, esse domínio, essa compreensão maior da essência de obras, por vezes, tão complexas? É meio mediúnica, meio inexplicável, essa intuição; sugere movimentos psicografados; não deveria, mas existe, e nos coloca de frente para o imponderável, ilógico, mágico, desconcertados, estáticos e extáticos diante da Arte por excelência, longe, e como, da ciência e da sua objetividade.

Por outro lado, tal e qual os cabanos, que venciam suas batalhas mas não possuíam estrutura intelectual e emocional para organizar de maneira lógica essas vitórias, fadados, portanto, a vencerem eternamente e perderem tudo de uma única vez, de fato, nunca nos preparamos, em nenhum dos aspectos, para assumir postos de liderança dentro da nossa própria profissão. Seguimos quixotescamente duelando contra moinhos inexistentes e perseguindo ideais subjetivos, cada vez mais distantes dos papeis que deveriam ser ocupados por nossa insubstituível práxis, com algumas raras, lúcidas e brilhantíssimas exceções. Parei de dançar aos quarenta e oito anos. Dentro de minha cabeça de brasileira, bailarina, mulher, mãe, cidadã quando consigo exercer meu direito de cidadania, algumas reflexões haviam tomado corpo. Já percebia com mais clareza – sem a vaidade normal do performer, normal mas que inibe a visão da realidade e, sobretudo na dança, limita o sentido do coletivo – que precisávamos nos preparar para ocupar o enorme espaço que ela dança, oferece àqueles que a vivenciaram. Dei-me conta de que, em qualquer tempo, essa preparação seria viável, ainda que imprescindível. O impossível seria ter invertido essa ordem: teorizado na juventude e tentado transpor o poço da orquestra mais tarde. E quanto mais cedo adquiríssemos consciência de que precisávamos aliar conhecimento específico à cultura geral, mais legítima e incontestável seria a possibilidade de respondermos, em todos os níveis, pela nossa própria opção profissional.

Por natureza, sempre fui curiosa e apaixonada por história, em geral. Igualmente, o ambiente familiar, na qual fui educada desde a infância, me predispôs para aprender, assistir, respeitar e amar a Arte e para ver na cultura, erudita ou popular, indistintamente, o bem de maior valor de uma nação.

Assim, foi com naturalidade que me vi, um dia, diante de uma nova platéia formada por jovens e inquietos estudantes de um curso de licenciatura em dança: o do Centro Universitário da Cidade. Foi ali trocando idéias, refletindo com eles sobre a trajetória da dança, no mundo e no Brasil, que acabei escrevendo um livro. Este livro.

Tenho convicção de que minha maior credencial reside nos mais de trinta anos em que atuei no palco, mais da metade deles no Theatro Municipal do Rio, no permanente aprendizado que me proporcionam a juventude investigativa de meus alunos e de meu próprio filho e o profundo amor que nutro pela profissão que abracei, amor que determinou até minha vida pessoal.

Casei-me com um bailarino. Vivo entre os artistas da cena. Não sou nem pretendo ter a erudição de um filósofo pensador, mas acredito que possa colaborar na condição de pedagoga mas, principalmente, na de bailarina, de alguém que viveu o outro lado, o lado de dentro da dança, para o conhecimento de sua história e de sua evolução, sinalizando, simultaneamente, para um novo caminho a ser percorrido por aqueles que, como eu, amaram-na e conheceram-na, 14961411_1308997905827764_1538666373_na partir de todas as suas faces. Nesse caminho deverá ter lugar, inquestionavelmente, a dimensão institucional que nos é devida.

CAMINADA, Eliana. Reflexões Dança. Sprint Magazine, Cidade, v.99, n.104, p.26-27, set/out 1999. Disponível em: . Acesso em: 18 set. 2003.