Vaslav Veltcheck – O Escultor de Destinos
Eliana Caminada – Rio, outubro de 2001
Da Tchecoslováquia para o Brasil, uma trajetória fascinante:
VASLAV Veltchek nasceu em Praga, capital da Tchecoslováquia, em 1896.
INICIOU-SE em ballet na Escola de Dança da Ópera Nacional de Praga, onde estudou com Auguste Berger, Nicholas Legat. Já em Viena estudou com Achille Viscusi. Ingressou no corpo de baile da principal companhia de sua terra natal em 1910 e, pouco tempo depois era promovido a solista dançando o ballet “Fada das Bonecas”.
VELTCHEK permaneceu em Praga até 1914, quando foi contratado, também como solista, para o Teatro Wolks – Ópera de Viena, onde continuou a estudar com Viscusi atuando como o principal intérprete do ballet “Contos de Andersen”.
NESTE mesmo ano estourou a Primeira Guerra Mundial e ele foi convocado pelo seu país para combater nas trincheiras da primeira linha da guerra.
LIVRE, com o fim do conflito, foi contratado como primeiro-bailarino e coreógrafo pelo Teatro Nacional de Liubliana, capital da Iugoslávia, onde permaneceu de 1918 a 1924. Lá realizou sua primeira coreografia – os três ballets da ópera “A Noiva Vendida” de Bedrich Smetana.
AO LONGO desse período de seis anos aproveitou para fazer dois cursos de seis meses na escola de Mary Wigman em Dresden. Wigman, figura mais importante do movimento expressionista alemão, teria importante influência em sua criação coreográfica; através dela conheceu e estudou com Rudolf Laban, o criador do mais aperfeiçoado sistema de notação coreográfica até hoje existente: labanotation. Com a mais famosa discípula iugoslava de Wigman, Lydia Wisiakova, percorreu toda a Iugoslávia até a Hungria dando recitais de dança clássica e moderna.
FOI AINDA nessa época que conheceu uma bailarina a qual se referiria mais de uma vez em entrevistas como “a mais perfeita bailarina que já vi. Linda e ágil. Nem parecia deste mundo“: Mia Slawesinska.
EM 1925 Veltchek foi para Paris estreando no Teatro Olimpia. Foi na cidade luz que teve a oportunidade de aperfeiçoar-se com Nicholas Legat, bailarino, coreógrafo e mâitre-de-ballet formado pela Escola Imperial do Teatro Mariinski que seria, para sempre, seguido e reverenciado como sua referência mais importante.
MENOS de dois anos depois, em 1927, convidado pelo revolucionário artista Filippo Marinetti, aceitou o cargo de coreógrafo e diretor do Teatro de Pantomima Futurista.
SEDIADA no Teatro Lírico de Milão a iniciativa teve significativa importância na vida de Veltchek.
CRIAÇÕES foram concebidas destacando-se La Salamandra, texto escrito especialmente para eles pelo dramaturgo Luigi Pirandello, com música de Massimo Bontempelli, e um ballet com música de Otorino Respighi.
OS espetáculos causaram polêmica. Em Paris, para não fugir à tradição vanguardista da cidade, alcançaram enorme êxito. No Teatro Madeleine receberam grandes demonstrações de entusiasmo; inúmeras foram as vezes em que Jean Cocteau foi cumprimentar Veltchek após os espetáculos.
A hostilidade com que foram recebidos na Itália não prejudicou sua carreira nem impediu, antes ajudou, a que, em 1928, ele retornasse a Paris contratado como primeiro-bailarino e coreógrafo da Opéra Comique onde, durante sua permanência percorreu, sempre com Wisiakova, a França, a Suiça e a Bélgica.
VELTCHEK já podia ser considerado, então, um artista de renome internacional. E foi nesse mesmo ano e na mesma Opéra Comique que ele conheceu La Argentina, bailarina que ele considerou a maior de sua época e da qual foi partner durante muito tempo.
SEGUNDO os artigos publicados no Brasil, mesmo passados quase vinte anos, Veltchek ficava silencioso ao falar de Antonia Mercê. Não escondia o fascínio que sua arte pura, gloriosa, exercera na sua vida e como a força daquela artista inimitável permanecera intacta na sua memória.
JUNTOS atuaram em El Amor Brujo, paradigmático ballet de Manuel de Falla, coreografado pela não menos famosa Pastora Imperio, cabendo-lhe o principal papel masculino: Carmelo.
“ARGENTINA era a própria dança. Como se transformava em cena. A primeira vez que dancei com ela, vendo-a realmente sofrer, completamente transfigurada, mais pálida, toda trêmula, acreditei que a tivesse tomado de surpresa um mal qualquer e murmurei num sopro: ‘Está se sentindo mal?’ Ela me olhou com seus olhos cintilantes: – Continue dançando… Foi só. O mundo dificilmente terá outra Argentina“.
EM 1930 Veltchek, contratado por Maurice Lehmann, assumiu a direção do Corpo de Baile do Theâtre du Chatelet de Paris onde permaneceu por cinco anos.
NESSE meio tempo participou como coreógrafo de um pequeno ballet do filme de René Clair, outra figura exponencial de literato, crítico e cineasta, Le Million, rodado em 1932. No papel principal encontrava-se Annabela, atriz e bailarina que fora casada com o astro de Holywood Tyrone Power.
CONCOMITANTEMENTE, ao longo desses sete anos criou para o Teatro de la Porte St. Martin as coreografias da conhecida obra de Henrik Johann Ibsen Peer Gynt com partitura musical de Edward Grieg, contando com a colaboração da bailarina oriental Nyota Inioka.
ATUOU como coreógrafo no Teatro Mogador, no Champs Elysées, no Michet e tomou parte em galas das quais mencionava, prazerosamente, a do Cercle Interaliée, quando a alta sociedade homenageou o Marajá de Khapurtala. Do mesmo espetáculo participava uma menina de doze anos que se tornaria um dos ícones da história do ballet: Tamara Toumanova.
EM 1937 o governo francês o contratou para dirigir, durante a Exposição Internacional, o Ballet de Paris, trabalho que lhe valeu uma condecoração oficial – a Ordem Nichaniftikhar, grau Oficial – pelos serviços prestados à dança e pelos méritos no campo da arte.
PARA a oportunidade criou Normandie de Maurice Jaubert e Finance de Kostia Konstantinoff.
A companhia era composta por um elenco primoroso do qual faziam parte bailarinos de fama tais como Marina Franca, Vladimir Dokoudovski, George Skibine e a jovem e brilhante Juliana Yanakieva.
YANAKIEVA veio com ele para o Brasil e daqui nunca mais retornou.
EM 1939, a convite do Prefeito Henrique Dodsworth, Vaslav Veltchek chegou ao Rio para atuar com Maria Olenewa na temporada no Theatro Municipal. Louis Masson fizera-lhe a proposta: passar três meses no Rio de Janeiro para organizar a temporada de 1939 do Theatro Municipal.
COMEÇAVA sua história conosco e ela seria, sem dúvida, de valor inestimável.
NO Brasil, premido pelas circunstâncias e pelo amor enorme que desenvolveu por este país ele permaneceu, sem interrupções, até 1953 e, intermitentemente, até sua morte.
EM 1953 e 1954 Veltchek atuou como coreógrafo do Teatro S.O.D.R.E. de Montevidéu e foi diretor no “Ballet Nacional da Venezuela” em 1959.
EM 1960 trabalhou no Teatro Zarzuela em Madrid, capital a qual retornou para trabalhar em 1965.
ADOECEU em 1961, mas prosseguiu trabalhando quase até o fim da vida. Seu coração resistiu até 1968, quando faleceu no Rio.
NOS teatros e países onde trabalhou compôs ballets de peso que abordavam os mais diferentes temas e estilos. Destacam-se, afora os já citados:
TEATRO de Liubliana:
QUADROS de uma exposição do compositor russo Modesto Mussorgski que, por sua vez, inspirara-se no pintor Vitor Hartmann.
CAPRICHO Espanhol de Nicolai Andreievitch Rimski-Korsakov.
DANSES Slaves de Antonín Dvoräk.
SUÍTE de Danses de Frederic François Chopin.
OPÉRA Comique:
FOUS de la dance.
LE Feu de la Dame de Delannoy.
LA Fiancée Vendue de Smetana.
THEÂTRE du Chatelet
SIDONIE Panacre.
NINA Rosa.
ROSE de France.
LA Yana.
MICHEL Strogoff.
TOUR du Monde.
TEATRO S.O.D.R.E.
PERSEPHONE de Igor Stravinski.
LA Danse des Morts.
ADÁGIO e Fuga em Dó de Johann Sebastien Bach.
SOIRÉES Musicales.
ISLA de los Ceidos.
SEU enorme trabalho no Brasil está, nesta biografia, mencionado em associação com sua chegada ao nosso país e com os diversos projetos que desenvolveu entre nós.
COMO criador, esse artista natural da Tchecoslováquia teve
um coração profundamente brasileiro.
NO Theatro Municipal do Rio de Janeiro:
TRAZENDO uma invejável bagagem profissional Vaslav Veltchek chegou ao Rio de Janeiro em maio de 1939, contratado, inicialmente, por três meses, para preparar a temporada daquele ano e dividir a direção da companhia com Maria Olenewa.
SERGE Lifar nos dirigira em 1934 e deixara uma experiência de valor inquestionável e uma grande esperança no futuro.
Contudo, embora sua presença entre nós – algo que ainda hoje parece inacreditável – tivesse sido um acontecimento de dimensões excepcionais, éramos apenas a pequena companhia da Escola Oficial.
A oficialização do Corpo de Baile só se dera dois anos mais tar
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NO Theatro Municipal do Rio de Janeiro:
VELTCHEK e Olenewa estrearam em julho a nova temporada.
COMO convidados o co-diretor trouxe Juliana Yanakieva e Thomas Armour.
ENTRE os trabalhos que montou para a ocasião mencionam-se Serenata, o ciclo Maurice Ravel composto de La Valse, Bolero e Pavana para uma infanta morta, que Veltchek também interpretou, Boite à Joujoux de Claude Debussy e Suíte Masques et Bergamasques de Gabriel Fauré.
DANÇOU também Maracatu do Chico Rei de Francisco Mignone, coreografia de Olenewa
SEU sucesso pessoal foi enorme; tanto agradou como bailarino, ainda que participando apenas de ballets especiais, quanto como um criador que teve a sabedoria de trazer dois artistas perfeitos para realizarem sua criação.
TÉCNICA, categoria, emoção: Yanakieva e Armour preenchiam tudo o que a programação exigia.
QUANTO aos bailarinos da casa?
ELES corresponderam plenamente aos dois grandes nomes que se apresentaram naquela temporada.
AO menos essa foi a declaração de Veltchek à Revista da Semana daquele ano sobre a atuação e a importância do trabalho de Olenewa como professora e diretora e sobre a sua expectativa em relação ao futuro do Corpo de Baile do Theatro Municipal.
E, observe-se, que na condição de maestro de dança formado num grande centro e por um mestre da envergadura de Legat, ele era muito exigente em matéria de ensino.
CHEGOU trazendo a orientação, para alguns ainda desconhecida, de que nas aulas de ballet os passos e movimentos eram ensinados decompostos e progressivamente. Sisudo, as expressões que usava nem sempre eram consideradas muito polidas.
MAS tratava-se muito mais de interpretação errada do sentido das palavras em português do que de temperamento e das conhecidas brincadeiras de brasileiros com estrangeiros. Segundo todos os que o conheceram intimamente, ele era um homem extremamente educado.
DE toda maneira, nunca brincou no trabalho, seja na aula, seja no ensaio.
FICOU famosa a expressão, repleta de sotaque, que usava para estimular os bailarinos a tentar permanecer em balance – equilíbrio sobre uma ou duas pernas -: ‘Fica, fica, fica.’ E nós ficávamos, instados por uma voz de liderança que obtinha um efeito psicológico, talvez, mas que funcionava.
OU quem sabe, o que é mais provável, a estrutura de sua aula conferia ao bailarino uma boa impostação e, naturalmente, as dificuldades técnicas começavam a ser superadas.
ELE era produto e senhor de uma tradição indiscutível.
VELTCHEK não esperava mesmo facilidades. Tinha consciência – ou quem sabe intuía – de que estava chegando a um país ao qual ligaria sua vida, um país que estava por ser construído, que de certo modo não havia ainda sido ‘descoberto’, ou melhor, ainda não se descobrira para a dança cênica.
HOJE, talvez, ele ainda pensasse que caminhamos relativamente pouco em relação a nossa auto-estima.
MAS, ele deu sua contribuição, uma contribuição maior do que a de muitos brasileiros a quem o Brasil não inspira nada. Deixou uma obra, um legado de pesquisa de criações inspiradas em temas nacionais que imortaliza sua figura como das mais importantes da nossa história.
E transformou-se na primeira personalidade da dança a levar uma companhia brasileira, o Conjunto Coreográfico Brasileiro, ao exterior – Uruguai e Argentina – de forma consagradora.
O ambiente de trabalho, na época, era calmo; os elementos femininos surgiam naturalmente e se revelavam talentosos, ainda que poucos homens se aventurassem a estudar ballet.
PRECONCEITOS contra a profissão, desinformação, péssima remuneração, a proverbial insegurança que ainda hoje nos persegue tornavam quase impossível o surgimento de valores masculinos em número suficiente para a realização de temporadas que tivessem um verdadeiro caráter profissional. A improvisação ainda se fazia notar apesar dos esforços de Olenewa e de todos os integrantes do elenco.
VELTCHEK viu que não teria tempo e poder para solucionar todos os problemas com os quais o Corpo de Baile já se confrontava há mais de dez anos. Mas era experiente, idealista e coragem para lutar pela dança não lhe faltava.
A presença de Thómas Armour contribuiu bastante para reforçar a opção dos rapazes por uma profissão linda, mas sacrificada e pouco valorizada.
SUA dança era viril e essa masculinidade era acentuada por uma Yanakieva pequena e feminina, mas que, quando começava a dançar Les Deux Pigeons com música de A. Messager surpreendia porque era um temperamento só.
TEMPESTADES de aplausos interrompiam o ballet no meio.
VERSÁTEIS, o contraste que ambos apresentavam entre essa coreografia e O Espectro da Rosa com música de Carl Maria van Weber, peça neo-romântica de Mikhail Fokine, tão difícil de executar tecnicamente quanto de atingir a atmosfera exigida pelo número, fascinara público, crítica e bailarinos.
POR outro lado, em La Valse Veltchek concebera para o conjunto, a figura de um caracol que ficou célebre. Nele a bailarina fazia chainé – movimentos encadeados de giros seguidos em deslocamento – em alta velocidade, contornando o caracol por dentro dele e provocando um alvoroço delirante.
PROEZA indescritível para a época, ainda hoje é considerado dificílimo e acessível somente a bailarinas de grande técnica de giro.
YANAKIEVA era austríaca de Viena e fora educada em Paris. Ganhara o primeiro prêmio do concurso dos Archives Internationales de la Danse de Paris de 1932 e no ano seguinte obtivera o grande prêmio Salle Wagram de Paris.
SEGUNDO consta, ela executou cento e quarenta e dois fouettés – giros seguidos executados no mesmo lugar – e depois caiu desmaiada.
DA temporada em que contou com a colaboração de dois mestres trabalhando harmoniosamente o Corpo de Baile saiu, sem dúvida, mais enriquecido e mais seguro.
PARA coreografar os ballets de óperas Veltchek renovou seu contrato por mais três meses.
NÃO sabia, então, que se tornaria brasileiro!!!
OS bailarinos começaram a apresentar o resultado da divisão de tarefas entre diretores competentes que se entendiam e se respeitavam.
“(…) O repertório apresentado então permaneceu durante muito tempo lembrado pelo público carioca“,
lembrava o bailarino e diretor Carlos Leite.
O Maestro e compositor Henri Rabaud enaltecera o valor e a disciplina “incontestável dos bailarinos brasileiros“. Na sua ópera Marouf a companhia portara-se além da expectativa.
AO pioneirismo de Olenewa, à contribuição de Serge Lifar, à notória dedicação de Yuco Lindberg, Vaslav Veltchek acrescentou sua experiência atualizada pelas recentes realizações levadas a efeito em Paris. A Ópera de Paris estava recuperando seu prestígio como a mais tradicional instituição da história do ballet e o fazia, justamente, pelas mãos de Lifar.
POR outro lado, embora tivesse a intenção de retornar, tão logo fosse possível, à Europa Veltchek começou a se apaixonar irreversivelmente pela terra brasileira. Os costumes dos nossos índios despertaram-lhe enorme interesse.
A deflagração da Segunda Guerra Mundial e a atração pelo Brasil retiveram-no aqui fazendo com que ele se tornasse um divulgador da nossa cultura para além das nossas fronteiras.
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A criação da Escola Municipal de São Paulo
MENOS de um ano após sua chegada ao Brasil, Veltchek recebeu um convite para mudar-se para São Paulo. Aquela grande cidade ainda não tinha uma escola oficial, apesar dos esforços de professores como Chinita Ullmann e Kitty Bodenheim.
A Escola Experimental de Dança do Teatro Municipal de São Paulo, dotada de um pequeno corpo de baile de dezesseis elementos dirigidos por Vaslav Veltchek, foi criada por ele em 02 de maio de 1940, data do exame de admissão, a partir da academia particular dessas duas damas pioneiras.
O professor morava no hotel Esplanada, perto do prédio onde trabalhava.
PRODUZIA muito, precisava ganhar tempo; não podia depender de transporte.
IMPOSSÍVEL avaliar o entusiasmo despertado nos jovens, sobretudo nas moças, que desejavam aprender ballet clássico na capital do Estado mais rico do Brasil. Apesar de seu rigor como professor, centenas de meninas e jovens paulistanas – rapazes quase nenhum – acorreram ao anúncio do início das atividades.
RESULTADOS no que tange ao ensino da dança acadêmica não podem ser mensurados em curto espaço de tempo, mas, logo no fim do primeiro ano, o aproveitamento dos alunos foi considerado brilhante, ultrapassando qualquer expectativa.
DESSA primeira experiência paulista com o ballet Veltchek citava Marília Franco, Edith Pudelko, Aracy Evans, Wilson Morelly, Pauline Godart, Gil Saboya e, posteriormente, Lia Marques.
PUDELKO destacou-se por suas atuações no Theatro Municipal do Rio, no Ballet da Juventude, também no Rio de Janeiro, e no Ballet do IV Centenário de São Paulo;
MORELLI viajou para o Estados Unidos onde fez carreira;
GODART dançou no Ballet Russo de Monte Carlo convidada por George Balanchine, após ter sido classificada em 2º lugar no concurso de admissão para a American Ballet School.
EVANS afirma dever a Veltchek tudo o que sabe, em que pese a inestimável contribuição de Olenewa na sua formação;
MARQUES foi primeira-bailarina do Ballet do IV Centenário e artista convidada da temporada de 1961 no Municipal do Rio, na temporada de Harald Lander;
SABOYA foi diretor da Escola Oficial de Bailados.
QUANTO a Marília Franco?
BEM, além dela ter atuado com destaque no Original Ballet Russo, sua história com Veltchek estava destinada a ser muito singular.
É Aracy quem esclarece que era difícil entender o que o mestre falava naquela época. Na condição de pianista e tradutor ajudava o maestro Italo Izzo:
“Vira nenê; vem para o centro, nenê“,
traduzia Izzo para as pequeninas estudantes, muitas vezes apelidadas carinhosamente com nomes de bichinhos.
LEMBRA-SE ainda que os alunos estrearam logo em seguida, antes mesmo de saberem grande coisa de ballet, na ópera Aída de Giuseppe Verdi.
“Eu fazia um dos negrinhos de Aída“, recorda-se.
NO programa de estréia a escola apresentou: Chopiniana, uma versão de Les Sylphides de Chopin, Danças Eslavas, Bolero e O Espectro da Rosa.
EXCETUANDO o último, que contou com a participação de Yanakieva e Armour, as Danças Eslavas constituíram-se no maior sucesso do espetáculo, até pelo conhecimento que o coreógrafo tinha das danças de seu país e pela sua própria atuação.
ELE não precisaria de muito tempo para ficar conhecendo muito bem o nosso também.
FESTAS Galantes de Giambattista Lulli, Noite de Walpurgis da ópera Fausto de Charles Gounod e Uirapuru de Heitor Villa-Lobos compuseram outro programa de sucesso.
COMO convidados, voltaram a atuar, sob a direção do mestre, Yanakieva, Armour, além de Alexandre Yolas e Yuco Lindberg.
APESAR de funcionar com o nome de corpo de baile, o grupo dirigido por Veltchek tinha um caráter amador – seus artistas não recebiam remuneração. Isto não mudava, de forma alguma, o rigor do trabalho, assim como não impediu a realização de inúmeros espetáculos.
NO período da manhã, de oito horas ao meio dia o corpo de baile,
“em formação“
frisa Marília, tomava aulas e ensaiava. A parte da tarde, entre quatorze e dezesseis horas, era reservada para as aulas particulares de Veltchek, seu principal meio de sobrevivência; de dezessete às vinte horas funcionava a escola gratuita bancada pela Prefeitura.
O conjunto só durou os dois anos que Veltchek ficou em São Paulo, o que não impediu grandes sucessos de público e crítica, como a encenação de Dança das Horas, numa versão na qual o coreógrafo introduziu outros compositores além de Amilcare Poncchieli.
O ballet era interpretado com orquestra e contava com a presença de senhoritas da alta sociedade. “Até cachorrinho de estimação entrava em cena”, lembra Evans, recordando-se, também, do luxo do programa de apresentação.
SE a companhia, oficialmente, custou muito a se estabelecer, a escola firmou-se logo passando a se chamar Escola de Dança Municipal, hoje com quase sessenta anos de existência.
INCONTÁVEIS foram os bailarinos oriundos da escola criada por Veltchek que se projetaram nacional e internacionalmente.
DE início todos tiveram que vir para a Capital para integrar suas companhias – o Theatro Municipal, o Ballet da Juventude, o Conjunto Coreográfico Brasileiro, o Ballet Society:
PUDELKO, Morelli, David Dupré, Arthur Ferreira, Dennis Gray, Johnny Franklin, são apenas alguns dos talentos paulistas que vieram para o Rio, atraídos pela possibilidade de um trabalho de caráter profissional e, quem sabe, pela indiscutível beleza da cidade e seu inegável cosmopolitismo.
ATÉ hoje somos artistas da dança procedentes de todos os Estados do Brasil e de outros países do mundo.
MARÍLIA Franco iniciara-se na dança com Chinita Ulmann; posteriormente viera para a escola do Municipal do Rio estudar com Olenewa.
AQUI conheceu Veltchek, tornou-se sua aluna particular e não hesitou em retornar a São Paulo para integrar o conjunto por ele fundado.
E, como nos romances, Veltchek se apaixonou pela discípula. Por ela se tornou, efetivamente, brasileiro: naturalizou-se.
CASARAM-SE em dezembro de 1942.
MAS seu contrato em São Paulo terminou e Veltchek deixou suas funções de mâitre-de-ballet da Escola Municipal daquela cidade.
ENQUANTO isso acontecia em São Paulo, um verdadeiro desastre estava reservado ao Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio.
DENUNCIADA, aparentemente de forma injusta, até porque lhe foi negado o direito de defesa, Maria Olenewa foi afastada da companhia.
TEMPOS difíceis!
DEVEU-SE a Yuco Lindberg a capacidade de reunir forças para resistir e manter o Corpo de Baile funcionando e cumprindo seus compromissos e temporadas enquanto se buscava o nome para dirigir a companhia.
MAS esse nome estava bem perto e já conhecia a companhia: Vaslav Veltchek.
De volta ao Rio
FOI nesse clima tenso, bem diverso da primeira temporada que havia passado aqui, que Veltchek voltou ao Rio trazendo com ele Marília Franco e Wilson Morelli.
REPRESENTAVA uma grande esperança de bons tempos para a companhia. Sua comprovada competência, sua experiência internacional foram bem recebidos pela crítica e pelos bailarinos.
ELE era tido como um artista com o dom de estimular os jovens talentos, difundir o sentido de cooperação entre os membros do conjunto em torno de um ideal comum, pregar o sacrifício em prol dos resultados da companhia vivendo, ele mesmo, para a dança de uma forma quase litúrgica.
OBJETIVAMENTE, seca, mas, educadamente, procurava evitar rivalidades, anular pretensões descabidas e era intolerante com indisciplina e desrespeito.
POR outro lado tinha um grande sentido de justiça e procurava despertar nos bailarinos um sentimento de autoconfiança e segurança para trabalhar.
SUA atuação à frente da Escola Municipal de São Paulo significava, naquele momento, a sua maior credencial para conseguir com o Corpo de Baile do Rio os mesmos resultados em pouco tempo.
LOGO na chegada procurou revalorizar bailarinas que há anos trabalhavam quase sem estímulo: Gertrudes Wolff, Lorna Kay, Itália Azevedo.
SEM falar de Maryla Gremo, com cujo concurso ele fez questão de contar, imediatamente, na condição de primeira-bailarina, atendendo ao clamor geral do público e da crítica e fazendo justiça à grande artista.
O convite para participar de ballets brasileiros feito a Eros Volúsia, bailarina de sucesso, responsável por importante pesquisa sobre o nosso folclore, revelou que o Brasil era agora sua Pátria também.
PARA essa temporada, juntamente com Lindberg, Veltchek montou três trabalhos com temas nacionais: Uirapuru, Uma Festa na Roça de José Siqueira e Leilão de Mignone, estreados em 13 de junho.
O seu ciclo Ravel foi remontado e La Valse foi dançada por Franco, igualmente com grande sucesso, em espetáculos levados a partir da última semana de maio.
A revista O Cruzeiro assinalava:
“(…) a encantadora visão do que se convencionou chamar de ‘Velha Viena’ de Ravel, onde o talento criador de Veltchek voou livremente, sem limitações impostas por enredos, se desenvolvendo no terreno da pura fantasia, lindamente interpretada com nuanças de graça e temperamento, secundada por um Lindberg galante e sóbrio“.
JÁ o Bolero, desta feita, dividiu a crítica: alguns o consideraram muito bom, um belo momento do espetáculo; outros o acharam apenas correto, para ser condescendente.
UIRAPURU, assim como outros ballets sobre lenda indígena, custaram a conquistar a crítica. Mas a criação de Veltchek, reputada como apenas formal, cedo desmentiu análises às quais faltou sensibilidade e sobrou prepotência.
EM poucos anos a imprensa estava rendendo homenagens a um homem que, acusado de colocar em cena uma mistura de peles-vermelhas com índio fantasiado para o carnaval, se tornaria amigo pessoal de Rondon e com ele, em longas conversas, se tornaria um profundo conhecedor dos costumes, usos e cultura dos nossos primeiros habitantes, amaria como poucos a terra que fizera sua também.
O Marechal Cândido Rondon, uma das figuras mais respeitadas da história do Brasil, tornou-se grande amigo de Veltchek. Um ano antes da chegada do coreógrafo ele havia participado da Comissão Mista da Sociedade das Nações que envolveu o Brasil, o Peru e a Colômbia.
A amizade de um militar sertanista e de um homem ligado ao ballet clássico é algo tão inusitado que talvez só possa acontecer mesmo aqui, no seio deste povo anárquico e surpreendente.
SEGUNDO todos os que privaram de sua intimidade, a casa de Veltchek era repleta de ornamentos, adereços e objetos dos índios – cocares, arcos, flechas, tangas – cada um deles com sua história, entre outras preciosidades.
COGITA-SE até que ponto Rondon teria tido influência nessa curiosidade transformada em amor e na vontade de conhecer nosso país.
ESSE desejo o levou, não só a conhecer e poder avaliar a autenticidade das peças que escolhia para decorar sua casa, os passos usados nas suas criações coreográficas; levou-o até a tentar chegar até nossos índios, viajando por grande parte do Brasil, fato assinalado por Helga Loreida, bailarina solista do Theatro Municipal.
REGINA Ferraz, à época Benevides, uma das alunas diletas de Veltchek, é mais uma pessoa a confirmar a paixão do tcheco pela nossa cultura indígena.
OUTRO amigo e orientador, desde sua primeira estada em São Paulo, foi Mário de Andrade, personalidade da nossa cultura que dispensa apresentações.
CONVENHAMOS, Veltchek não poderia estar cercado e amparado por um Brasil mais brasileiro e autêntico
AO repertório mencionado Veltchek acrescentou Felicidade de Lindberg com música de Alberto Lazolli, Amaya de Lorenzo Fernandes e Olenewa, além de outros números da temporada de 1939, em espetáculo levado no dia 26 de maio que marcou a festejada rentrée de Maryla Gremo em Walpurgis.
A temporada contou também com as primeiras-bailarinas Leda Iuqui, Madeleine Rosay e Luísa Carbonell e apresentou, como uma aposta de futuro promissor, a jovem Tamara Capeller.
FRAGMENTOS da suíte do ballet O Quebra-Nozes de Piotr Ilitch Tchaikovski foram incorporados ao repertório constituindo-se, não só em ótima oportunidade para os elementos da companhia, como também mostrando Rosay em grande forma.
FOI programado ainda Divertissements, trabalho composto de vários pequenos números que ajudaram a mostrar a qualidade dos nossos artistas: Itália Azevedo e Carlos Leite em Cena Dançante de Luigi Boccherini, Capeller em Pizzicato de Léo Delibes, sucesso que ela repetiria no ano seguinte, Iuqui e Carbonell em Meia Canha de Dilú Melo e Tango Geresano de Azagro e Rosay em A Morte do Cisne de Camille Saint-Saëns.
MARÍLIA Franco causou frisson na Bacante.
AINDA hoje, a Dança da Sacerdotisa de Baco de Delibes, feita por Veltchek para ela, é lembrada pela intérprete como a sua maior emoção.
“Dionisíaca“,
disseram os experts dessa paulista, muito jovem e bonita, vestida de túnica escarlate.
MAS, a bem da verdade, o maior sucesso daquela temporada foi de Gremo e Lindberg.
FELICIDADE, uma criação de Lindberg, surpreendeu alcançando aplausos unânimes; em Tristezas e Alegrias do Amor de Gremo, sobre música de Fritz Kreisler
“(…) um delicadíssimo pas-de-deux que vale por uma temporada inteira“,
ambos se superaram, disse Grock em 26 de junho de 1943 na revista O Cruzeiro.
O crítico, contudo, não deixou de assinalar, na mesma reportagem, o triunfo da série de espetáculos populares promovidos por Veltchek, demonstração de que o ballet já possuía um grande público no Rio, apesar das restrições feitas às criações com temas brasileiros.
NUM balanço final, pesando qualidades e defeitos, os espetáculos foram considerados de bom nível, contribuindo para esquecer a ausência de um conjunto internacional no Rio naquele ano.
“(…) ALIÁS, seria ideal que as apresentações fizessem parte da programação de 1944, o que esperamos aconteça, pois assim merecem os nossos baletômanos, que já formam hoje uma verdadeira multidão, culta e excepcionalmente entusiasta”
registraram os críticos.
ALTOS e baixos, levando-se em conta os limitados recursos da época, podem ser considerados naturais e, mesmo não tendo se constituído numa unanimidade, a temporada acabou revelando-se única, até então, dentro do processo de evolução da companhia.
OCORRE que, tanto crítica quanto público, tornavam-se mais exigentes à medida em que as personalidades convidadas iam se sucedendo na direção da companhia e o tempo ia passando.
SE considerarmos, como os ingleses, a fundação da Escola como a data oficial das atividades do Corpo de Baile, mais de um lustro havia transcorrido; oficialmente a companhia já sobrevivia desde 1936.
OS bailarinos iam formando sua platéia e ela ia elegendo seus ídolos. As grandes companhias estrangeiras, com suas estrelas, transformavam-se em parâmetro de avaliação e a comparação era inevitável. Exigia-se cada vez mais.
CRÍTICOS como Raul de Azevedo e Grock registraram que os artistas principais poderiam ter sido melhor aproveitados.
EM comum a todos o protesto pela ausência de Maryla Gremo com sua atmosfera romântica e espiritual participando de Les Sylphides.
O próprio Azevedo, porém, foi um dos críticos que terminaram por reconhecer em Veltchek, além da competência, capacidade para dialogar com os jornalistas e com o público, aceitando críticas e revendo escolhas.
NUMA matéria bastante sensata expressou sua admiração por um mestre que lhe pareceu suficientemente seguro para trocar idéias e ouvir sugestões.
O casamento com Marília Franco não durou nem um ano. No fim da temporada já estavam separados.
TALVEZ tenha pesado a diferença de idade entre eles, de mais de vinte anos; talvez ele,
“umgentlemancomo marido e como profissional”,
diz Marília, não tenha conseguido conviver com a idéia de que a carreira de sua esposa estava apenas começando e que envolveria, necessariamente, pelo seu talento, outras expectativas e outra trajetória.
INABALÁVEL, mesmo vivendo problemas pessoais, Veltchek concluiu com êxito a temporada colhendo enormes aplausos para a concepção colorida e viva das danças de La Traviata de Giuseppe Verdi.
ESTENDERA seu trabalho de professor ao Cassino Copacabana seu trabalho de professor. Lá, entre outros bailarinos profissionais, despontava uma menina talentosa que começara seus estudos com Luísa Carbonnel e que iria impressionar a grande Nina Verchinina poucos anos depois: Sandra Dieken, futura primeira-bailarina do Municipal e solista do Original Ballet Russo, hoje diretora e coreógrafa do Projektgruppe Bühnentanz do Studiobühne und Filmwerkstatt e pedagoga do setor de dança da Akademisches Sportamt da Universidade de Colônia.
PARA ela, naquele ano de 1943, Veltchek coreografou “Czardas” de Monti e “Pizzicatto” de Delibes.
E chegamos a 1944.
O ambiente de ballet no Rio era efervescente. A Segunda Guerra trouxera muitos artistas renomados às Américas. Os cassinos ofereciam oportunidade de trabalho de boa qualidade aos que aqui aportavam, sobretudo aos estrangeiros, que mais experientes e, quem sabe, mais sofridos, eram muito menos preconceituosos, logo aceitaram atuar na noite, dirigidos por bons coreógrafos ou interpretados por bons bailarinos e ganhando bons salários.
OS homens nunca haviam podido se permitir o luxo de dizer não a uma ocupação.
MAS, aos poucos, até nossas bailarinas adotaram o recurso de trabalhar fora do Theatro para sobreviver à crônica remuneração inadequada, complementando seus salários com apresentações em shows, filmes e revistas.
JACQUES Corseuil escreveu, na época, um longo artigo intitulado “O Ballet que poderíamos ter” onde discorria sobre a oportunidade única que a guerra nos dava para construir, com os grandes artistas que aqui se refugiavam, um ballet nacional de peso internacional. Dizia então o crítico:
“(…) E no Rio, vivendo um momento raro com a formação imprevista de um ambiente de dança, pela reunião de um grande número de valores do ballet – estamos vendo fugir uma oportunidade de realizar algo em dança, que talvez tão cedo não se repita (…)”.
COBRANDO a temporada no Colón que ia de maio novembro, as realizações de Balanchine nos Estados Unidos, de Algeranoff em Londres e de Dimitri Rostoff no Peru, traçava um paralelo com a presença, entre nós, de Nini Theilade, bailarina do Ballet Russo de Monte Carlo, de Gert Mamgren do Ballet Jooss e de Ruth Sorrell, da escola moderno-expressionista, no sentido de que oferecêssemos a eles e a nós mesmos, a chance de entrar para o mundo cultural civilizado, tal como o estavam fazendo outros países americanos.
REVELAVA-SE consciente da contribuição que haveriam de dar nomes brilhantes do Original Ballet Russo, como os de Tamara Grigorieva, Tatiana Leskova, Anna Volkova, Lidia Kouprina, James Upshaw e Vladimir Irman, todos decididos a tentar uma carreira nova, dançando e lecionando.
SEM falar de Yanakieva, que fizera-se brasileiríssima.
PODE-SE considerar que aqui existia um verdadeiro congresso de dança, tal o número de artistas famosos, reunidos na mesma cidade ao mesmo tempo.
SEGUNDO Corseuil, cada qual no seu setor ajudaria na difusão do ballet e contribuiria para a formação de um metiér de dança:
“(…) Esses artistas voltarão mais tarde, provavelmente, como já estiveram aqui antes. Mas presos a grandes companhias, ao passo que agora estão livres, ansiosos por fazer qualquer coisa em matéria de arte“.
E mencionava Yurek Shabelevski, censurado na ocasião por atuar em cassinos:
“PURO preconceito; a arte está no que fazemos e não onde fazemos“.
COMO a endossar as palavras de Corseuil, Veltchek coreografou para Leskova dançar no Cassino Copacabana uma canção popular brasileira que a bailarina dançou ao som da bela voz de seresteiro de Sílvio Caldas, ‘o caboclinho querido’.
NO mesmo ano, novamente para Leskova, criou Prelúdio no. 5 de Sergei Rachmaninoff, dançado no Theatro Municipal em espetáculo que reunira a Iuqui e Morelli, a própria Leskova, Volkova, Grigorieva e Kuprina.
SANSÃO Castelo Branco, o organizador do espetáculo, era um sonhador; tentara nesse ano, sem sucesso, criar com Shabelevski uma companhia denominada Pantomima Ballet.
E Corseuil continuava assinalando a importância do trabalho de Veltchek que conseguira realizar, segundo o crítico, uma temporada de caráter internacional somente com artistas nacionais.
COM essa declaração, feita no ano seguinte, colocava um ponto final definitivo nas especulações sobre o trabalho do mestre tcheco em 1943.
BAILARINOS do Teatro Mariinski exilados em Paris haviam sido responsáveis por toda uma nova geração de bailarinos. Muitos artistas de Sergei Diaghilev ainda estavam em plena atividade produzindo o que de melhor existia no mundo da dança da época.
LÁ, como aqui, os valores já respeitados eram produtos de artistas estrangeiros vindos de fora.
OLENEWA fora nosso ponto de partida e encontrara em Lindberg um enorme apoio; Veltchek dera continuidade a essa obra.
“(…)NACIONALISMO neste caso não é fazer campanha contra os elementos externos, mas aproveitar os que aqui estão para nosso benefício artístico (…) Um ballet depende, naturalmente, de vários outros fatores e não só pura ‘danse d’école’, mas um bom professor deve ter sido um bom dançarino e, um bom dançarino clássico, não se improvisa, é produto de uma longa e cuidadosa formação. Sem ele, nada feito“,
reclamava Corseuil
ADVERTIA o crítico:
“(…) FINDA a guerra, sem algo que os prenda aqui, é apenas natural que procurem voltar ao ambiente onde se fizeram. Veltchek ao Chatelet, Volkova e Leskova para rever a família em Paris, Grigorieva para formar o seu grupo de dança, Kouprina para fazer o ballet nacional na Austrália“.
E concluía:
“(…) PRESSÁGIOS pouco risonhos para os ‘baletômanos’ que, aspirando a perpetuação do Ballet no Brasil, vêm passar em branca nuvem a ‘chance magnífica. E que mais tristes ainda se tornam porque vêm nisso, talvez, o sinal de uma grande injustiça: que a dança clássica continua se não desprezada, pelos menos desvalorizada entre nós, enquanto outras manifestações de cultura têm todo o apoio e toda atenção“.
EMBORA possamos admitir essas palavras conclusivas como perfeitamente atuais, efetivamente, a história se incumbiu de consagrar os vários nomes que, aqui permanecendo, criaram as circunstâncias para realizar seu próprio trabalho, seja por motivos pessoais, seja pela paixão por essa terra que os prendeu a ela inexoravelmente.
ASSIM fazendo, deram uma inestimável contribuição para o estabelecimento e para a divulgação do ballet no nosso país.
COM Olenewa, Lindberg, Gremo, Veltchek, Leskova, Yanakieva e, mais tarde Igor Schwezoff, Nina Verchinina, Eugênia Feodorova, sem esquecer Ricardo Nemanoff, Vera Grabinska e Pierre Michailovski, entre tantos outros estrangeiros-brasileiríssimos, construímos um ballet clássico importante, um único, mas institucional e artisticamente de valor inestimável, uma das poucas referências da dança estatal do Brasil.
NAQUELE ano de 1944 tivemos apenas um registro de apresentação do Corpo de Baile, no Teatro Serrador, em espetáculo organizado pelo Maestro Eleazar de Carvalho: o Festival Chopin de dança e declamação, ainda sob a direção de Veltchek.
O Diário de Notícias noticiou que, de modo geral, o programa agradou ao público que não regateou aplausos aos participantes.
SE Eurico Nogueira França detestara a versão de Lindberg de Chopiniana denominada Inspiração, Armando Riedel viu-lhe formas neoclássicas que superava discussões sobre “técnicas e pseudoescolas“.
***
O Conjunto Coreográfico Brasileiro
“QUANDO me falaram nos pequenos dançarinos do Municipal, vindos de um asilo do Rio denominado “União das Operárias de Jesus” desconfiei. O nome “Jesus” tem sido muito usado e abusado como farol de associações que se acaso voltasse ao mundo, o Nazareno dissolveria com a mesma correia com que espalhou os vendilhões do Templo. (…). Quanto à educação que os asilos proporcionam não é a que desenvolve a personalidade, sim a que “domestica”, isto é, justamente a que destrói a personalidade, para que a ordem social não seja perturbada e o mundo permaneça a dolorosa miséria física e moral que é. Ora, pois, sendo assim, nada convida menos do que ir ao teatro ver coreografia de crianças de asilo. Mas fui – e maravilhei-me! E, informando-me das razões da maravilha, não posso resistir à tentação de falar ao público. Foge ao dever humano quem não denuncia o crime e não exalta a verdadeira virtude (…)”. Monteiro Lobato, transcrito de O Estado de São Paulo para o Jornal do Brasil – 18 de dezembro de 1947.
NO mesmo ano a Brasil Musical de maio publicava a inusitada notícia de que uma companhia formada por crianças brasileiras sob a direção de Vaslav Veltchek, após o sucesso nacional e no Uruguai e Argentina, preparava-se para fazer uma tournée à Europa.
ESTAS expectativas, extraordinárias até hoje, diziam respeito a uma das mais belas realizações culturais de caráter social jamais concretizadas em nossa história: o grupo de ballet da União das Operárias de Jesus.
A companhia, formada pelos órfãos que viviam na instituição, fora criada para complementar a educação esmerada que o asilo oferecia.
D. Clotilde Guimarães, a ‘mamãe Clotilde’, conhecida ‘dama da sociedade’ era uma mulher culta. Casada com o conhecido e bem posto jornalista, Afonso Guimarães, o Guima, formara-se em Farmácia.
POSSUÍA considerável bagagem intelectual, era profundamente espiritualizada e havia passado pela dolorosa experiência de perder as três filhas, Maria, Clara e Carmem, todas do coração.
COM o apoio da pianista Antonietta Monteiro, ‘Tieta’, também senhora rica, pianista, que havia perdido seu único filho, resolveu criar uma obra filantrópica que recebesse crianças órfãs de pai e, por vezes, até de mãe, mas que funcionasse em outros moldes dos, até então, empregados.
NEM uma nem outra, entretanto, se satisfizeram só com o asilo. Evoluíram no sentido de fazer daquela casa um colégio que, enquanto Instituição modelo, pudesse ser um verdadeiro lar, uma casa onde houvesse lugar para o amor e a para a fé.
ESTAVAM distantes de reformatórios e, se qualquer reforma existia consistia, exatamente, na idéia de que oferecendo formação artística e cultivando a sensibilidade de crianças muito pequenas e sem herança cultural,conseguiriam criar jovens com expectativas de futuro e esperanças no dia de amanhã, adultos preparados para a vida.
NA sede da escola em Botafogo, mais precisamente no Mourisco, salas de aula ocupavam o mesmo espaço que oficinas de arte e classes de música. Ali, quase duzentos alunos, sem distinção de raças – pelo colégio circulavam cabecinhas louras, ruivas, negras, castanhas, cabelos lisos e crespos -, praticavam esporte, estudavam, aprendiam ofícios, cultivavam as artes, contavam com biblioteca e recebiam tratamento médico e dentário, numa impressionante demonstração de respeito ao ser humano e de crença na liberdade e na democracia que a Arte traz implícita nela mesma.
INICIALMENTE colocaram somente as meninas da União – Myriam Guimarães, Orlanda Saturnino, Maria Adelaide Saturnino, Teresa Bittencourt, Maria do Carmo Pessoa e Amélia dos Santos Moreira – para estudar na Escola de Danças, dirigida por Lindberg.
A Escola possuía seu Ballet Infantil, que contava com as solistas Berta Rosemblat, que se transformou num mito com o nome artístico de Bertha Rosanova, Oneide Craveiro, Arlete Saraiva, Bila Manganelli, Wilma Lemos Cunha, Noemia Silveira Primo, Maria Lúcia Nunes Pombo e Haydée Gonçalves.
DO espetáculo levado à cena em 13 de janeiro de 1944 faziam parte as meninas da União das Operárias de Jesus.
AS coreografias eram assinadas por Lindberg e por Veltchek, diretor do Corpo de Baile.
AO retornar ao Rio, Veltchek assinara com a Prefeitura um contrato do qual constava uma cláusula que o obrigava a dar aulas para crianças por ela admitidas para tal fim.
INÚMERAS foram examinadas, mas sua atenção foi despertada pelo grupo de órfãs da União que viu na Escola de Danças. Foi pois, com muita prazer que, a pedido de Tieta, fez uma visita ao asilo.
O encontro foi um divisor de águas na sua vida e na vida daquelas crianças.
“(…) ERAM tão grandes as possibilidades desse grupo Liliputiano que fui separando uma a uma até que tive as oito na primeira fila” afirmou Veltchek então.
UMA vez aceito o convite feito por mamãe Clotilde e Tieta para ministrar aulas de ballet para as crianças ali matriculadas, ao trabalho, impactante para qualquer época, de dois corações e duas mentes extraordinariamente dotadas, juntou-se o talento, o saber e a profunda humanidade daquele tcheco-brasileiro.
JUNTOS criaram a Academia Brasileira de Dança, extensiva a alunos não pertencentes ao colégio, que contribuíam com suas mensalidades para a manutenção da própria escola.
COM o correr dos anos, jovens de classes sociais mais privilegiadas começaram a freqüentar a Academia da União das Operárias para fazer aulas com o célebre professor: Márcia Haydée, Laura Proença, Alice Colino, Regina Benevides Ferraz, Precilda Pinotti, Beatriz Costa às quais se juntaria Ana Maria Wanzer, entre outras.
VENCIDAS as resistências de Veltchek, o curso teve início numa garagem do colégio transformada em estúdio.
EMBORA, a princípio, ninguém pensasse em formar um grupo de dança, ali ele começou a coreografar o Noturno nº 2 de Chopin; ali começou também a amar as meninas e meninos como se fossem seus filhos.
REGINA relembra:
“ELE amava aquelas crianças. Era ciumento delas. Quando a conhecida professora Mariquita Flores foi contratada para dar aulas de dança espanhola para o Conjunto ele ficou abalado. Não estava acostumado a dividir horários e o amor daqueles pequenos bailarinos. Mas lhes ensinou tudo, inclusive a mim; mostrou a importância de dançar com uniformidade, transmitiu o sentido do trabalho de equipe numa companhia de ballet. Talvez esse tenha sido o grande diferencial entre o trabalho que apresentávamos e o de outras iniciativas, até mesmo o Corpo de Baile do Theatro Municipal“.
EM pouco tempo o mestre tinha um espetáculo pronto que se exibiu no teatro do Instituto de Resseguros ainda em dezembro de 1944.
O recital alternava números de ballet –Noturno de Chopin e Serenata Humorística de Mignone – com apresentações da gurizada tocando piano e violino.
DOIS menininhos já faziam parte do grupo. Num deles se reconheceria um pequeno gênio: Yellê Bittencourt.
NO programa de estréia Veltchek escreveu:
“OS ‘tutus’, vestidos românticos da bailarina clássica, enchem o espaço do palco, transformando a realidade numa visão e irradiando um atmosfera de pureza e fragilidade. A harmonia dos gestos graciosos se casa com o ritmo sensível do “Noturno” de Chopin para exprimir a beleza“.
NAS férias de fevereiro de 1945, no dia 04, já batizado como Conjunto Coreográfico Brasileiro, a pequena troupe voltou a se apresentar no Teatro D. Pedro em Petrópolis:
“(…) NESSE momento percebi que, tão grande quanto o preparo que lhes dava, senão maior, – eram as qualidades artísticas, o senso do dever e a exata responsabilidade dos meus discípulos. – Falei então com D. Clotilde Guimarães e, no daí 10 de dezembro de 1945 apresentamos o nosso primeiro espetáculo de Bailado e, com ele, o lançamento do Conjunto Coreográfico Brasileiro“.
AO programa do primeiro recital foi acrescentado o ballet Sonata, com o presto da Sonata nº 1 de Ludwig van Beethoven e Trepak, dança russa de O Quebra-Nozes.
NO dia 03 de dezembro do mesmo ano, por ocasião da apresentação na Escola Nacional de Música, o repertório estava enriquecido pela Suíte Inglesa e pelo Prelúdio em si menor, ambos de Bach.
O Conjunto Coreográfico Brasileiro estreou oficialmente no Theatro Municipal do Rio uma semana mais tarde, no dia 10 de dezembro.
O programa, bem impresso, com lindas fotos do elenco, não menciona em que teatro o espetáculo teve lugar. O Noturno transformara-se na Suite de Danse. Número rigorosamente clássico, mostrando que o progresso dos meninos acompanhava seu crescimento, foi repetido mais dificultado destacando, além das figuras “encantadoras” de Yellê e Orlanda e da graça de Amélia e Tereza, a estréia de Adelaide.
O corpo de baile foi reconhecido como raro em nível mundial pela limpeza, rigor, disciplina, noção de ritmo e musicalidade de seus integrantes. A participação de Yeda e Miriam, acompanhando Orlanda na Escocesa, foi considerada admirável.
VELTCHEK montou ainda: Invenção a três vozes de Bach, Tempo di Ballo de Domenico Scarlatti, Dança Brasileira de Mozart Camargo Guarnieri, Furiant, dança tcheca de Smetana e Selanka, uma seleção de temas populares tchecos, tudo acompanhado ao piano por Tieta.
ALÉM dos já mencionados, constavam do elenco os nomes de Olga Baptista, Clotilde Moreira, Hilda de Oliveira, Neusa Vasconcelos, Yara Garrido da Silva e Yeda Rio Doce.
“ELE nos levava a museus, igrejas históricas, passeios; passava muito tempo dentro da União, além, muito além das horas de trabalho. Nós o adorávamos e ele correspondia de todas as maneiras. Não me recordo de defeitos em Veltchek“,
lembra Amélia – às vezes apresentada nos programas como Amélia dos Santos -, a ‘Amelinha’, professora das mais queridas e conceituadas da Escola de Danças Maria Olenewa.
POUCO a pouco, o sisudo professor começou a sentir-se envolvido por aquele trabalho que, talvez, jamais tivesse sonhado um dia realizar.
E realizar com tal dedicação que provoca, até hoje, em todos os que com ele tiveram o privilégio de trabalhar, as mais emocionadas reações.
POR outro lado, Veltchek exercia absoluto fascínio sobre seus alunos-bailarinos.
MUITO bem vestido – só se trajava Lanvin – camisas de seda pura, abotoaduras de ouro, sapatos de couro legítimo, falava russo, francês, tcheco, inglês, português e espanhol, se é que não falava outras línguas.
REFORÇA Amélia:
“Ele demonstrava um amor incondicional pelo Brasil, verdadeiro fanatismo pelos ritmos brasileiros, era carinhoso e afetivo ao extremo“,
confirmando os depoimentos de todos os que com ele participaram daquela experiência.
O Theatro Municipal foi esquecido. O que fora programado para se constituir em aulas bem ministradas transformou-se num grupo de minúsculos bailarinos-prodígio, cuja estréia foi sucedida de tal êxito que consagrou o coreógrafo, a iniciativa e os pequenos artistas.
A criação de Veltchek foi algo sem precedentes na história do ballet no Brasil; indiscutivelmente, uma de suas páginas mais bonitas.
NO primeiro espetáculo oferecido pela companhia o público não sabia o que mais o surpreendia ou encantava: se as criações do coreógrafo, seu trabalho como pedagogo, a excelência de cada pequeno bailarino ou se a própria orientação humana e sensível daquele grupo de pessoas.
O Conjunto Coreográfico Brasileiro começou a ser comparado às grandes companhias de ballet que visitavam o Rio.
E o crítico destacava, entre aqueles bailarinos ‘mignons’, admitindo a dificuldade de fazê-lo tal o equilíbrio de seus talentos, as solistas Tereza, Amélia e Olga e, muito particularmente, Orlanda Saturnino,
“cuja graça e apuro técnico fazem-na uma pequena maravilha“.
VELTCHEK, contudo, não revelava preferências entre os jovens.Afirmava:
“(…) EU adoro essas crianças, admiro as qualidades particulares de cada um, e resumo a minha preferência e entusiasmo em três palavras – Conjunto Coreográfico Brasileiro“.
TEREZA Bittencourt, irmã de Yellê, revelou-se, como ele, um talento para a dança.
MESMO casada, após haver abandonado o ballet, mantém viva a recordação daquele tempo que, para quem está pesquisando, parece delírio: crianças dotadas, carentes, tratadas como artistas, com todo um repertório criado para elas pela competência e sensibilidade artística e humana de um grande coreógrafo; jovens que recebiam uma educação esmerada, da qual constava a melhor música e dança de primeira qualidade.
AMÉLIA não consegue conter as lágrimas diante da lembrança de seu professor. Doce, mas sem qualquer traço de pieguice deu, em 1998, num seminário sobre a História da Dança no Rio realizado pela professora Vera Lopes, um emocionado depoimento sobre o que significou na sua vida o Conjunto Coreográfico Brasileiro, como aqueles anos foram determinantes, o que significou Veltchek para ela, seus companheiros e para o ballet no Brasil e do Brasil.
COMO ela, também Míriam, renomada pedagoga, professora adjunta da UniverCidade e figura da maior importância da Associação de Ballet do Rio de Janeiro, escreveu reafirmando o que é comum a todos os que viveram aquela experiência que nunca mais foi repetida: a admiração por Veltchek.
“SER aluna de Veltchek foi uma dádiva de Deus. Pertencer ao Conjunto Coreográfico Brasileiro, criado e dirigido por ele, foi a porta de acesso ao conhecimento de dança que fundamentou todos os meus trabalhos, tanto como bailarina que fui, como, e principalmente, pela seriedade como professora e coreógrafa nos dias atuais. Vaslav Veltchek, com a criação do Conjunto Coreográfico Brasileiro foi o marco de uma época e hoje se perpetua na figura do grande mestre de todos nós, na lembrança de todos os que amam a dança’“.
NILTON Vasconcellos e Yellê eram os meninos do Conjunto.
BEM mais tarde, outro rapazinho talentoso, convidado por Veltchek para atuar na companhia, estaria destinado a se transformar num dos mitos do Corpo de Baile do Theatro Municipal, um dos maiores intérpretes de “L’Aprés-midi d’un Faune” que os brasileiros conheceram e aplaudiram: David Dupré.
YELLÊ foi considerado um caso raro de temperamento artístico “Um pequeno Nijinski’“
diziam os mais entusiasmados, entre os quais Monteiro Lobato.
EXPLICITAMENTE, com entusiasmo e saudade, Yellê se refere a Veltchek como a um pai. Se, vê-lo dançando com leveza, equilíbrio e graça parecia um milagre, esse milagre, ainda hoje, ele atribui ao inesquecível professor.
“TODA a minha formação artística e mental, tudo que sei devo a ele; também jamais esquecerei o quão ansiosamente esperávamos por sua presença afetuosa, segura de si, culta.
“VELTCHEK possuía verdadeiras preciosidades que gostava de me mostrar“, recorda. “Dentre as que conseguiu conservar consigo lembro-me de um par de sapatos de ponta de Anna Pavlova, a quem vira dançar, e de um contrato de Maria Taglioni assinado por seu tio. Não sei com quem ficaram essas relíquias; talvez tenha tido necessidade de vendê-las para viver.
SUAS histórias nos pareciam inatingíveis mas na verdade, quando tentei carreira internacional pude avaliar a dimensão de sua competência e de sua importância na minha vida. Ele construiu e deu sentido ao nosso presente e ao nosso futuro“.
O menino Yellê, feito bailarino, seguiu com Veltchek para o Uruguai onde começou sua carreira internacional. Veio ainda ao Brasil em 1952 e em 1956, as duas vezes para interpretar ballets do mestre. Daí partiu para o exterior, impressionando como bailarino e mais tarde como professor.
SEU currículo inclui a Ópera de Bordeux, o Grand Ballet du Marquis de Cuevas, um convite de Serge Lifar para integrar a Ópera de Paris, George Balanchine, o Joffrey Ballet, importante companhia norte-americana, a atuação como mâitre-de-ballet na companhia do grande coreógrafo Maurice Béjart, entre outros feitos.
ESTUDOU piano com Guilherme Fontainha, violino com Edmar Guerra, como as demais crianças da União, e regência com Eleazar de Carvalho; chegou a compor Improviso, peça para piano transposta para partitura por Edino Krieger.
A saída de Veltchek do Conjunto Coreográfico Brasileiro fê-lo abandonar tudo. Tudo menos a dança; não conseguiu viver sem ela.
VELTCHEK era minucioso, exigia o máximo de seus discípulos. E conseguia que eles correspondessem inteiramente, a ponto de obter os resultados que obteve com um grupo infantil.
SUA maneira peculiar de trabalhar ele preservou por toda a vida.
MESMO nos últimos anos, quando já lhe faltavam forças e saúde, ele mantinha o velho costume de ensaiar exaustivamente cada parte criada e só partir para um novo trecho da coreografia quando o pedaço marcado estivesse absolutamente limpo, acabado e burilado. Dessa forma o ballet terminava pronto para ir para o palco.
ISSO causava estranheza a muitos bailarinos imediatistas, displicentes até.
MAS naquela casa no Mourisco, uma obra muito séria estava se realizando; naquele ambiente de respeito e educação o coreógrafo podia criar em paz, sem pressões e recebendo uma tal demonstração de afeto que não tinha como não retribuir.
E ele o fez; foi realmente um pai para aquelas crianças. Acreditou nelas, deu-lhes uma formação profissional, proporcionou-lhes a possibilidade de ingressar num mundo difícil, porém sedutor, um universo no qual ninguém entra em contato impunemente.
AS marcas da cena são definitivas, ou você nunca esteve nela de corpo e alma.
O Conjunto Coreográfico Brasileiro foi transformado em realidade pela mãos e pelo coração de um tcheco. E o Brasil recebeu dele uma das maiores contribuições de um estrangeiro a nossa cultura.
AS apresentações da União das Operárias de Jesus tinham lugar no Theatro Municipal, no Teatro Fenix e em outras importantes casas de espetáculo da capital.
UM ano após a estréia no Municipal, no dia 03 de dezembro de 1946, Veltchek apresentou um segundo programa completo, levado no Rio e em Porto Alegre, o que veio confirmar sua competência para, acima de tudo, perceber naquelas crianças um talento ímpar.
DO grupo já constava o nome de Beatriz Costa de Oliveira, muito elogiada interpretando o Prelúdio na Suite de Danse.
BEATRIZ Costa seguiu para o Estados Unidos onde ingressou no New York City Ballet para ficar na história como a única bailarina brasileira a pertencer ao elenco de Balanchine.
NO dia 10 foi reapresentado o primeiro programa.
DE 13 e 17 do mesmo mês o Conjunto Coreográfico estreava em Porto Alegre levando os dois espetáculos.
A fama da companhia, que já se estendia por alguns estados do território nacional, começava a romper fronteiras.
CRÍTICOS, analistas, personalidades, cobravam das autoridades apoio efetivo para aquelas crianças e jovens que “elevavam o nome do Brasil ao mais alto conceito da arte internacional, conseguindo reunir em louvor uníssono as mais expressivas vozes do nosso meio artístico“.
EXIGIA-SE de capitalistas, amantes da arte, baletômanos e público em geral, atenção e assistência para a arte cristalina que começava a interessar mais a franceses, suíços, canadenses, argentinos do que a nós.
AFINAL, dois anos após a fundação oficial da companhia ela já tinha se apresentado no S.O.D.R.E de Montevidéu e no Odeon de Buenos Aires.
UM verdadeiro triunfo!!!
NÃO se tratava de ufanismo, é o que leva a crer a opinião de todos os que tiveram a chance de ver aquele momento da dança brasileira.
É claro que um nacionalismo, mais do que legítimo, tomava conta da população que freqüentava teatros naquela época, mas o que o Brasil estava apresentando ultrapassava o sentimento de orgulho pela Pátria. O que envolvia a todos era a constatação de que aquele grupo dirigido por Veltchek
“(…) se constituía no único movimento coletivo em prol da arte em nossa terra, cujos integrantes são todos exclusivamente brasileiros natos, crianças pobres deste Brasil tão mal compreendido“,
bradava N. Radagazio, sem esquecer que por trás daquelas récitas de inacreditável qualidade, que por trás da confiança daquelas crianças estavam mamãe Clotilde, Tieta e, acima de tudo, Vaslav Veltchek, mais do que mestre, o grande amigo daqueles jovens.
COM o seu trabalho aquele estrangeiro proclamava seu grito de fé no talento do nosso povo e na papel da arte para extrair o melhor desse povo, seu direito na sociedade pelos seus próprios dotes e capacidades natas.
A temporada do Conjunto Coreográfico Brasileiro de 1947 começou no Theatro Municipal em 28 de maio e apresentou três programas compostos de criações anteriores e alguns ballets novos, entre os quais seu conhecido Quadros de uma Exposição, uma nova versão de Uirapuru, Sinhô do Bonfim de Camargo Guarnieri e Batucagê de Mignone
É de Camargo Guarnieri a carta de 20 de agosto de 1947:
“MEU caro Veltchek, – Você não pode calcular, a alegria que senti com o seu telegrama de hoje! Ainda guardo nos meus olhos o trabalho maravilhoso realizado pelas “Operárias de Jesus”, guiadas pelo seu coração e pela sua imensa inteligência de grande artista. Nas andanças de minha vida tenho visto muita coisa bonita, neste mundo de meu Deus, Mas eu lhe confesso com sinceridade que raras vezes pude ver e sentir coisa tão bela e harmoniosa como o trabalho de suas alunas. Você deve sentir-se orgulhoso pelo se enorme talento criador. Da argila obscura e informe você criou maravilhas de encher os olhos e o coração. E que felicidade para mim saber que a minha música está também servindo para aperfeiçoar o espírito daqueles que a má fortuna golpeou tão impiedosamente. Eu compartilho da ventura de vocês e quero, ao terminar esta apressada carta, que você transmita aos grandes artistas que estão nascendo em suas mãos toda a minha sincera gratidão. A obra que estas almas generosas estão dando ao Brasil não deve ficar escondida. É mesmo preciso que você, com o seu gênio, revele ao mundo a extraordinária riqueza que d. Clotilde Guimarães e suas companheiras souberam aprimorar para o nosso orgulho. Um abraço fraternal do seu velho amigo. – (a) Maestro Camargo Guarnieri’“
ORLANDA Saturnino e Yellê Bittencourt foram premiados naquele ano com o título de “Melhores bailarinos de 1947” pela Associação Brasileira de Críticos Teatrais.
A nova versão de Uirapuru, criação que Villa-Lobos declaradamente gostara, já fora apresentado naquele ano no Teatro Cultura Artística de São Paulo.
A par do enorme sucesso do próprio ballet, a crítica destacou o progresso de Nilton, a expressividade de seus braços outrora tão sem vida, e o desempenho “qualquer coisa de imenso” de Tereza e sua interpretação da índia caçadora.
QUADROS de uma Exposição foi considerada uma das maiores criações de Veltchek:
“Um soberbo espetáculo para o mundo“,
foi a voz geral.
O ballet foi depois remontado para o Theatro Municipal em mais de uma temporada.
MAS, por incrível que possa parecer, interpretado pelas crianças o ballet adquiria mais autenticidade e causava perplexidade.
DIANTE dos olhos do público desfilavam os Gnomos interpretado por Orlanda; O velho Castelo vivido com intensidade por um Yellê de apenas doze anos de idade, mas compenetrado como um adulto, elaborado como um grande artista; Toulleires, passagem infantil lindamente dançada por Míriam, Hilda, Yeda, e Maria do Carmo Pessoa; Bildo pesado carro polonês representado pelos bailarinos, idéia sugerida pelo próprio ritmo imprimido à coreografia; O pintinho apoiado na admirável técnica de Orlanda; Samuel Goldemberg e Schmule os dois judeus, criação forte e impressionante mostrando Amélia e Tereza em interpretações totalmente distintas das que haviam feito até então; Mercado de Limoge mostrando extraordinária atuação do conjunto; Baba-Yaga a caverna da velha feiticeira interpretada por Orlanda, concepção considerada arrojada e cuja participação das crianças levava aos assistentes a sensação de estar vendo um conjunto estrangeiro consagrado; e finalmente A grande porta de Kiev apoteose do ballet, impressionante pela força da música, da movimentação de massa, pelo destaque dos bailarinos principais e pelos magníficos figurinos de Enrico Bianco.
A temporada repetiu-se em agosto no Teatro Fenix e no Regina.
EM Porto Alegre o conjunto estreou no Teatro São Pedro em 13 de setembro, reafirmando a impressão causada no ano anterior e o progresso dos discípulos de Veltchek.
NO Teatro Municipal de São Paulo os espetáculos iniciaram no dia 17 de outubro.
A temporada no Uruguai foi realizada no Estudio Auditorio do S.O.D.R.E iniciando no dia 18 de novembro. A tournée prosseguiu em Buenos Aires onde estrearam em 12 de dezembro no Cine-Teatro Odeón. O “(…) notável ballet juvenil” apresentou dois programas, ambos objetos de comentários de vários noticiosos que denotavam, não só o encantamento, mas a perplexidade diante daquele grupo de crianças “profissionais“.
VALSAS de Esquina é desse ano.
NO dia 08 de janeiro de 1948 d. Clotilde recebeu uma cópia do ofício do Embaixador do Brasil no Uruguai, transmitindo ao Ministro da Educação e Saúde a magnífica impressão do Conjunto em Montevidéu e aproveitando o ensejo para parabenizá-los:
“SENHOR Ministro, Tenho a honra de levar ao conhecimento de Vossa Excelência que constituíram êxito artístico, nesta Capital, as representações realizadas no salão do S.O.D.R.E. pelo corpo de bailados da “União das Operárias de Jesus”, do Rio de Janeiro. (…) Se estes espetáculos não houvessem sido, do ponto de vista de bilheteria, absolutamente compensadores, – dada a circunstância de já estar a estação de Inverno em sua fase final -, representaram verdadeira consagração sob o ponto de vista da apreciação do público e da crítica culta da Imprensa desta Capital. Assim, mercê das notícias dos críticos teatrais, que deram o devido realce ao mérito artístico dos bailados da “União das Operárias de Jesus”, o número de espetáculos teve de ser aumentado, sendo que os últimos foram assistidos por “salas” cheias.
(…) As referências críticas foram muito elogiosas. Não só aos componentes do bailado, mas também à direção artística de Vaslav Veltchek. (…)
Foi também salientada pela crítica uruguaia a circunstância de que os componentes do “Conjunto Coreográfico Brasileiro” se houvessem saído airosamente tanto na interpretação de música clássica, como de modernos estrangeiros e brasileiros, como Villa-Lobos e Francisco Mignone. Duas composições de Mignone, “Valsas de Esquina” e “Batucagê”, transformadas em bailados, despertaram a maior sensação, sendo bisadas pelo público (…)”.
ALGUNS ballets já conhecidos e consagrados e mais Rossiniana de Gioacchino Antonio Rossini, Children’s Corner de Debussy, Fantasia de Mozart, Sesta e Valsas de Esquina compuseram os espetáculos levados no Municipal do Rio em dezembro de 1948.
NO programa pode se ler:
“(…) ESTOU encantado com o que vi. A obra é deveras notável e de grande finalidade patriótica. Este conceito corresponde a um sério compromisso: o amparo moral e material do Prefeito e do Gal. Mendes de Moraes – 22-8-47“.
CLEMAN Descoueyte, Diretor da Escola Nº 18, de 2º grau discursou em Montevidéu:
“(…) ESTOU seguro, senhores, de que, para compreender e amar o Brasil, mais realizou esta mensagem de Beleza que significa o Conjunto Coreográfico Brasileiro, do que a palavra magistral ou o tipo de imprensa, porque estas crianças e adolescentes nos falam o idioma universal da Arte, que facilita o entendimento, a compreensão e o amor entre os homens. A eles, novamente, “muchas gracias.” El Pais – Montevidéu, 10 de dezembro de 1947“.
EM de 12 de junho de 1949 no Municipal o Conjunto estreou Invenção a três vozes de Bach, Dança e Prelúdio de Dimitri Shostakovitch, As três irmãs de Fructuoso Vianna e Alegria na Roça de Villa-Lobos.
EM 15 de outubro início de nova temporada no mesmo teatro. Do programa constam estas palavras do bailarino e coreógrafo internacional Vania Psota:
“NO curso de minhas viagens ao redor do mundo, jamais encontrei uma escola melhor e mais perfeita“.
TOCATA em Dó de Bach e Duas Épocas, estreadas no dia 08 de dezembro, já são de 1950.
EM 1951, quando se registra a última reportagem sobre Veltchek e do Conjunto Coreográfico Brasileiro, a companhia dos pequenos grandes bailarinos já tinha no seu repertório vários programas completos.
HOJE, relembrando essa realização, custa-se a crer que ela tenha sido, efetivamente, levada a efeito e que, contudo, tenha terminado após sete anos de atividades ininterruptas.
JAMAIS se soube, exatamente, o que aconteceu.
SEGUNDO a interpretação de alguns, para mamãe Clotilde a companhia tornara-se maior do que a própria obra filantrópica fugindo a sua finalidade primordial; outros alegam que Veltchek tinha planos de conduzir ‘seus filhos’ à profissionalização, levando-os a fazer prova para o Corpo de Baile do Theatro Municipal, o que não teria agradado à direção da União das Operárias de Jesus.
OUTROS professores deram aulas, depois de Veltchek, para o Conjunto Coreográfico Brasileiro.
NÃO houve jeito. O espírito que animara aquelas crianças, que tornara possível aquele milagre estava quebrado.
IMPOSSÍVEL dissociar a casa do Mourisco de Veltchek, neutralizar junto aos bailarinos, cujo crescimento ele acompanhou, sua figura de orientador, pedagogo, pai e coreógrafo.
SERIA assim por toda a vida de cada um deles.
COM a saída de Veltchek acabou-se o Conjunto Coreográfico Brasileiro.
PARA ele, também, certamente, começou aí o seu fim.
OS que lhe eram próximos atestam que sua decepção foi imensurável. Continuou a trabalhar, era preciso, mas nunca mais teve o mesmo entusiasmo.
SEJA como for, juntos, as criadoras do projeto, o pedagogo Veltchek e as crianças do Conjunto Coreográfico Brasileiro escreveram uma página da qual nos orgulhamos e na qual hoje, mais do que sempre, devemos nos mirar.
***
A CRÍTICA e o trabalho de Veltchek
O Conjunto Coreográfico Brasileiro revelou para a própria crítica aquilo que nem sempre ela observado na obra de Veltchek no Theatro Municipal: sua competência, seu talento, sua enorme capacidade criadora.
OS primeiros comentários, de 1943, eram ainda reticentes. Ao longo da trajetória do Conjunto Coreográfico eles foram se tornando elogios rasgados, generalizados, feitos por personalidades de grande envergadura do mundo cultural, que não tinham o menor pudor de revelar o orgulho ao constatar o produto de algo nacional de tamanha qualidade que podia ultrapassar fronteiras.
O Globo de 28 de abril de 1943 publicou matéria sob o título “O que se pode esperar da direção de Veltchek“:
“ESSA temporada deve ser especialmente assinalada não só pela atmosfera criada pela presença prestigiosa e respeitável de um artista e mestre como Veltchek, como ainda pelo seu interesse cultural pelos próprios bailados brasileiros, visto que teremos, entre outros, o Uirapuru do maestro Villa-Lobos, criado aqui no Rio com tanta poesia através de Madeleine Rosay e, em São Paulo, pela emoção casada à sensibilidade nacional de Marília Franco, e agora editado pelo talento autônomo da criadora dos bailados brasileiros, ou seja, Eros Volúsia. É de confrontos como esse oferecido mediante três interpretações de um só bailado que se desenvolve o interesse do público pela dança, e se vai formando, com o próprio gosto, o espírito da platéia. Daí o dizermos que esta temporada de bailados oferece, sob este, como sob outros aspectos, um excepcional interesse para a nossa educação cultural e artística em matéria de dança“.
A Brasil Musical do mesmo ano mencionou o ‘frisson’ causado pela interpretação de Marília Franco para a Bacante criada para ela por Veltchek e publicou:
“… ELA, uma autêntica revelação, de grande temperamento; a coreografia uma obra-prima de estilo anti-acadêmico e perfeitamente moderno, com certa influência do expressionismo alemão“.
SE Jaime de Barros arrasou com a temporada de Veltchek, Corseuil, em compensação, declarou em 1944:
“(…) VASLAV Veltchek, dançarino e coreógrafo, que veio para a temporada de 39 e aqui ficou, é também o ‘mâitre-de-ballet’ que em 43 realizou uma coisa que muitos julgavam impossível: uma temporada oficial no molde das estrangeiras, apenas com dançarinos nacionais“.
JÁ se referindo às crianças da União das Operárias de Jesus Radagazio afirmou em 1945:
“(…) CADA criança dança compenetrada de sua parte e consciente do seu trabalho e, quando o conjunto se apresenta em grande marcação como Prelúdio no 244, de Bach, ou na Sonata op. 2 no 1, de Beethoven, ficamos admirados da magnífica disciplina que rege aquele grupo infantil, disciplina que pode servir de exemplo a muito agrupamento profissional de adultos“.
ANGELO Guido de Porto Alegre, referindo-se à excelência das apresentações do Conjunto em 1946:
“(…) SE os alunos e alunas do prof. Veltchek já no ano passado, em grupo ou isoladamente, empolgaram a nossa platéia dessa vez causam esse arrebatador encantamento que só podemos sentir diante das manifestações que encerram alto conteúdo de vida espiritual e de beleza“.
O ano de 1947, pródigo em manifestações da imprensa, registrou inúmeras críticas de deslumbrados artistas e jornalistas.
AS notícias se multiplicavam no Diário de Notícias, no Jornal do Commercio, A Noite, A Manhã, em todos os jornais e revistas da época.
BRASIL Musical:
“ESTE brilhante conjunto coreográfico dirigido por Vaslav Veltchek, e que tem merecido do público e da crítica carioca a unânime aprovação, em todas as suas apresentações, segue, em outubro, contratado pelo conhecido empresário Jean Clairjois, para exibir-se no ‘Theâtre des Champs Elysées’, de Paris. Em novembro iniciará uma tournée por toda a França, Bélgica, Holanda, Suíça e Itália, que durará de 8 a 10 meses. Antes dessa grande viagem, no mês próximo, se apresentarão estes já famosos meninos da União das Operárias de Jesus em Montevidéu e Buenos Aires. Boa sorte!”
MARK Berkovitz em The Arts, do Brazil Herald:
“ANO passado, após uma das performances do Conjunto Coreográfico Brasileiro, um amigo perguntou-me: “Nós gostamos disso porque estas crianças são bons bailarinos ou porque são crianças?” Esta questão é muito pertinente: crianças que dançam são sempre um espetáculo muito tocante,e raramente nos questionamos se é artístico. Isto explica o sucesso rápido de tantos prodígios no palco e na tela. Mas eu não creio que este seja o caso do “Conjunto Coreográfico Brasileiro”. Sem dúvida eles gostam do que estão fazendo, e eles comunicam este amor à audiência a qual está sempre mais pronta para aplaudir crianças que adultos. Mas estas crianças também possuem uma base artística e técnica muito sólida, uma consciência do que a dança representa. Para encurtar, a maior parte deles são artistas, pequenos somente no tamanho“.
W., crítico de O Globo que assim se assinava:
“PASCHOAL Carlos Magno quer mostrar-me o Conjunto Coreográfico Brasileiro. Não importa a chuva, não lhe importa nada, nem o frio nem a fome. Não posso deixar o Rio sem ver os meninos e as meninas do Conjunto Coreográfico Brasileiro! Vou. Chego já. E daí a momentos, no salão da União, experimento uma das maiores emoções da minha vida: dez ou doze crianças, ao som de um piano, com suas vestes de exercício coreográfico, dançam, para meus olhos maravilhados – sem luzes, sem cores, sem nada – uma sonata de Beethoven, o Batuque de Mignone, uma Mazurca (…) Meus amigos! Surpreendi-me com os olhos cheios de lágrimas! Eu nunca vi uma coisa mais comovente (…) E porque ainda não foram ao Recife se já foram até Porto Alegre? Ficaria eu a tarde inteira ali, vendo o “ballet” obra maravilhosa de Veltchek se não me arrastassem para o almoço, onde Paschoal falou, mais do que comeu. À saída entrava Firkusny. Tive inveja dele. Ia ver o que eu poderia repetir“.
GUILHERME Figueiredo comparou o Conjunto Coreográfico Brasileiro ao Teatro de Brinquedo de Álvaro Moreyra, considerando a atuação do grupo como a sistematização do milagre:
“Ali o talento pedagógico de Veltchek foi buscar meninos e meninas para o seu milagre, o amor ao gesto, ao ritmo, ao som, à interpretação dos sentimentos. (…) E não deixeis que esse milagre seja somente um milagre. Está em nossas e vossas mãos a oportunidade de sistematizar um milagre que é o de dar uma clara, nobre e bela infância às crianças brasileiras“.
O Correio da Manhã em extenso artigo de Eurico Nogueira França publicou:
“(…) Está transcorrendo no Teatro Fénix a temporada de “ballet” das admiráveis crianças de Veltchek. (…) Desenvolve-se essa obra singular de criação artística, marcada de alto cunho educativo, em círculos concêntricos que de cada vez se dilatam mais no sentido da penetração entre o público e da conquista de novos territórios estéticos. Reconhece-se a mesma força impulsora, a unidade de intenções, o mesmo significado que nos comove pelo seu sabor de arte pura e nascente (…)”.
Mário Nunes no Jornal do Brasil comoveu-se:
“(…) Não queremos falar de educandário. Não queremos falar de filantropia. Queremos, isso sim, é exaltar, no terreno da arte pura, uma das mais belas realizações da atualidade, o Conjunto Coreográfico Brasileiro. (…) Vaslav Veltchek, que carinhosamente e sem visar lucro pecuniário é o mestre de “ballet” dessas encantadoras figurinhas, merece todos os louvores. O público exigindo, no final, sua presença em cena, reconheceu sua benemerência e o alto teor artístico dos seus ensinamentos”.
E Andrade Muricy reconheceu:
“(…) Foi um sucesso artístico e moral. Um exemplo. Números como Quadros de uma Exposição, Uirapuru, Tríptico, Sinhô do Bonfim e Valsas de Esquina, valem qualquer sacrifício para vê-los“.
XIMENA em El Debate de Montevidéu exaltou-se:
“(…) este assombroso bailarino de doze anos que é Yellê, cuja figurinha em cena se perfila com rasgos de bem definida personalidade artística, nos deixa praticamente sem palavras“.
ENQUANTO La Razon de Montevidéu colocou:
“(…) VASLAV Veltchek é um coreógrafo que conquistou fama com sua belíssima atuação nos centros de maior exigência artística, mas este “ballet” brasileiro, talvez seja o mais interessante laurel de sua brilhante carreira”.
E La Mañana de Buenos Aires carimbou:
“(…) OS movimentos e as evoluções são tão exatos que parecem realizados por uma só consciência (…)”.
A revista Alfar de Montevidéu em reportagem de seis páginas de Jose Maria Podesta de 1948 afirmava:
“PELO panorama onde a dança move suas harmoniosas figuras – panorama que aqui vemos sempre tão parvo – atravessaram, pasmando-nos um pouco, estes desconcertantes meninos e adolescentes dançarinos, a quem regia, com magistério ao um tempo severo e paternal, Vaslav Veltchek, criador, deflagrador, diretor do insólito Conjunto Coreográfico Brasileiro. (…) Mas eis que estes meninos dançam, eis que articulam um nobre espetáculo, merecedor da contemplação atenta; eis que superam suas limitações e penetram, com pés firmes, nesse mundo da Dança feito de harmonias puras, de perfeição matemática, de estilística austera, e se manifestam nele como límpidos signos – límpidos, desenvoltos e cabais – jamais forçados nem monstruosos; eis que esses corpos miúdos se transfiguram, cingindo-se na abstração desnuda ou carregando-se de pathos expressivo, sem que a vitalidade e a frescura orgânica se vejam nele desmentidos, nem grotescamente disfarçado sua autêntica candura. (…).Eis, enfim, que operam o milagre de serem bailarinos ao entrar em cena… Este milagre é obra de Vaslav Veltchek, bailarino, coreógrafo, educador, homem de formação sólida e segura (…)”.
E relembrava o tempo em que conhecera Veltchek como partner de Argentina, um esguio e fabuloso intérprete de Carmelo em El Amor Brujo, cuja pujança eslava permitia que ele penetrasse na árdua maneira espanhola de dançar.
SUA sólida formação acadêmica era permeada do expressionismo de Laban e de outros avatares da dança livre.
“(…) Ás vezes, nestas encantadoras figuras que ele rege e move, vejo aparecer – temperadas, adaptadas com eclética habilidade – as idéias de Laban sobre o espaço e sobre a radiação corporal, o sensível e vibrante movimento de braços e mãos de Mary Wigman (…): quantos influxos vêm, desde seus primeiros e caudalosos mananciais, a brotar novamente nestes meninos (…)”.
MARGERY Hepplewhite na revista Ballet, de Londres, em fevereiro de 1948:
“No Brasil também tem outro grupo. ÚNICO PELO CARÁTER de seus jovens bailarinos apresentam-se pelo orfanato que é sua casa (UNIÃO DAS OPERÁRIAS DE JESUS). Seu “mâitre-de-ballet” é Vaslav Veltchek, antigo diretor da Ópera Comique e do Chatelet, que agora, depois de quatro anos orientando seus jovens artistas, poucos dos quais tem mais do que 16 anos, é capaz de apresentar um vasto repertório, para o qual, novamente, várias das composições têm sido providas por grandes compositores brasileiros como Villa-Lobos (Uirapuru) e Guarnieri (Sinhô do Bonfim)”.
BERKOVITZ, em enorme reportagem de 1949 ilustrada por Carlos Scliar embasbacava-se:
“Tenho certeza que a “União das Operárias de Jesus” é o orfanato menos ortodoxo do mundo, como também acho que “orfanato” é o termo menos indicado possível para essa instituição. (…) Há vários anos fui assistir a um espetáculo de bailado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Confesso que não gosto de ver crianças se exibirem no palco, e fui um pouco contra a vontade, absolutamente disposto a achar o espetáculo fraco. Saí encantado, Vi que se tratava de um grupo do melhor nível profissional, sério, compenetrado, de verdadeiros artistas e não de crianças amestradas. (…) O “Conjunto Coreográfico Brasileiro” é sem dúvida uma verdadeira glória da “União” e da dança no Brasil. Os melhores compositores e pintores brasileiros colaboram com o coreógrafo Veltchek. (… ) As coreografias são todas de Veltchek, e é realmente admirável como na maioria das vezes ele soube aproveitar o grande talento dos integrantes do conjunto, sem lhes tirar a espontaneidade e a graça que se espera de um conjunto tão jovem. O “Conjunto Coreográfico Brasileiro” pode aparecer ao lado de qualquer boa companhia profissional, em qualquer parte do mundo“.
DIAS antes ele estivera assistindo, na mesma sala, a um ensaio das crianças da União, quando chegaram membros do Ballet des Champs Élysées. Jean Babilée, Nathalie Philippart, Youly Algaroff, Irène Skorik, Nicholas Polajenko, Boris Kochno, André Girard, todos ficaram completamente absortos diante dos pequenos bailarinos dançando Uirapuru e El Amor Brujo. Jean Babilée disse ao crítico:
“ISTO é fantástico. Nunca pensei que uma tal perfeição fosse possível“.
ESSA perplexidade era manifestada pelo demais bailarinos assim como pelos do Original Ballet Russo, por Serge Lifar, pelos pianistas Rudolf Firkusny e Alexandre Brailovski e por quantos visitavam o trabalho do grupo e prestigiavam a genialidade de Veltchek.
ACCIOLY Netto em O Cruzeiro 23 de dezembro de 1950 com o título ‘Vaslav Veltchek atinge Bach’ derramou-se:
“(…) PODE-SE dizer, sem perigo de contestação, que em tudo e por tudo, menos no número de intérpretes, naturalmente essa audição que nos deu o Conjunto Coreográfico Brasileiro no programa da Pró-Arte, foi superior a qualquer récita do Ballet da Ópera de Paris. E mais ainda, em 1950, no palco do Municipal, com exceção talvez de Tamara Toumanova, nenhum a bailarina superou essa admirável Amélia (…) Com Tocata e fuga de Bach não só Vaslav Veltchek como o Conjunto Coreográfico Brasileiro, atingem a uma quase perfeição, e sem dúvida alguma, é o que de maior realizou em coreografia em nossos palcos. Poucas companhias já nos apresentaram bailados de tão profunda e singela beleza, como concepção, e nenhuma, seguramente, conseguiu superar tecnicamente, a execução dos jovens artistas da União das Operárias de Jesus. Tocata e fuga em dó maior, nos seus três tempos, perfeitamente marcados, com as oito bailarinas e três bailarinos, foi o mais belo espetáculo que assisti esse ano, e talvez um dos maiores momentos de emoção que a dança já me facultou“.
DANCE and Dancers de 1951 profetizou:
“SÉRGIO Cardoso-Ayres, o novelista brasileiro, olhou o começo do que poderá ser uma importante companhia e declarou: Continuando nossa iniciativa de trazer-lhes o panorama do Ballet em cada país do mundo, nós viemos ao Brasil. A América Latina não tem uma grande tradição na história do ballet. Mas é certo que a terá no futuro’“.
TAMBÉM de 1951 é a capa da Seleções do Reader’s Digest com o artigo de Paschoal Carlos Magno.
ENCANTADO pelo trabalho desenvolvido pela União das Operárias de Jesus, considerava o ballet o cume dessa obra magnífica. Dizia com a paixão que lhe caracterizava a personalidade:
“(…) ENTRE todas as suas iniciativas a mais importante, de repercussão nacional, é sem dúvida alguma o “Conjunto Coreográfico Brasileiro”, sob a direção de famoso coreógrafo Vaslav Veltheck. Na casa grande de Botafogo seus elementos encontram no que se refere ao aprendizado de sua arte uma disciplina séria e afetuosa. (…) Dançar, para esses jovens, é um prolongamento do mundo feérico da infância, onde coisas inanimadas possuem voz e formas humanas. (…) Não é pois de espantar que, desde a infância habituados a transportar o fantástico, o irreal, o extraordinário para a ponta dos pés e das mãos, para cada curva do corpo, os artistas do “Conjunto Coreográfico Brasileiro”, vindos do verdadeiro seio do nosso povo, se hajam tornado os mais puros e os mais belos dançarinos do Brasil“.
***
UM viajor:
NA década de quarenta, sem dúvida, a grande prioridade de Veltchek foi o Conjunto Coreográfico Brasileiro. Isso não impediu que em 1945 ele montasse para os alunos-bailarinos da Escola Municipal de São Paulo a Dança Inacabada, nem que solucionasse sua vida pessoal casando-se, em 1947, com Dionísia, uruguaia que foi sua companheira até seus últimos dias.
TAMPOUCO impediu que, antes de retornar ao Theatro Municipal como coreógrafo convidado das temporadas de 1952 e 1953, emprestasse sua colaboração ao Ballet da Juventude.
VELTCHEK, assim como todos os artistas que moravam nessa cidade, estrangeiros ou não, concorreu, quer como coreógrafo, quer como mâitre-de-ballet, para que este grande sonho dos cariocas sobrevivesse. Conseguiram seu intento por duríssimos dez anos.
O Ballet da Juventude, idealizado e fundado por Castelo Branco, constituiu-se na primeira tentativa de criação de uma companhia de ballet estável, de caráter nacional e privado embora, ao longo dos dez anos em que funcionou, tenha contado com verbas esporádicas do Ministério da Educação e Cultura
EM 2 de junho de 1947 as Valsas de Esquina de Veltchek compunham o programa do conjunto.
EM 1948 a companhia reapareceu graças à persistência de Castelo Branco. Para o espetáculo que estreou em 30 de agosto no Auditório do Instituto de Educação Veltchek criou Rei Sol, obra que foi levada ao lado de ballets de Maryla Gremo, Yuco Lindberg e Edy Vasconcelos. Um livro de ouro foi instituído para tentar manter o empreendimento.
EM 1950 Castelo Branco retirou-se da direção, mas Veltchek, assim como Gremo, Leskova, Yanakieva, Consuelo Rios, Gilberto Motta, Dimitri, Johnny Franklin e Pierre Klimov continuaram lecionando. novos bailarinos continuaram a ser admitidos para uma companhia que lutava para se manter vendo que o fim estava próximo. Professores e bailarinos se alternavam, sem salários, sem perspectivas.
A morte de Castelo Branco, em 1956, colocou um ponto final definitivo no empreendimento.
***
AINDA no Municipal do Rio:
O Corpo de Baile do Municipal ganhou sua autonomia como instituição em 1952. Deixara de ser um corpo auxiliar de ópera; no nosso contracheque já não vinha mais escrito: bailarino auxiliar.
INGRESSAVA assim numa fase inteiramente nova, que permitia à direção imprimir uma orientação afim com o nível cultural da cidade do Rio de Janeiro.
O Theatro não era mais uma simples casa de espetáculos de aluguel, mas uma instituição integrada à finalidade de ser um centro irradiador de arte, graças, sobretudo a seus corpos estáveis – coro, baile e orquestra – além da Escola de Danças e a de Canto Lírico, criada pouco depois.
COUBE à Comissão Artística e Cultural elaborar as temporadas selecionando espetáculos que atendessem, não apenas aos aspectos artísticos, mas também ao patriótico, dando-se preferência às produções de autores nacionais, sempre que possível.
NADA de atitudes xenófobas, mas uma verdadeira preocupação de conferir uma roupagem erudita a nossa cultura oferecendo-lhe nosso maior e mais representativo teatro e seus artistas.
A obra de Veltchek cabia como uma luva a esse propósito.
SENSATAMENTE, Tatiana Leskova convidou Veltchek a retornar ao Theatro Municipal para participar daquela temporada como coreógrafo.
BALLETS de real significado e interesse para o público foram então criados. Alguns foram escolhidos pelo seu caráter clássico, como Il Combattimento di Tancredo e Clorinda e Quadros de uma exposição; outros pela beleza, colorido e qualidade do libreto e da música.
LESKOVA criou Salamanca do Jarau de Luiz Cosme; Veltchek remontou Sinhô do Bonfim, ballet que já conquistara público e crítica.
MAS o sucesso marcante foi Papagaio do Moleque de Villa-Lobos, coreografia considerada arrojada e com ‘sabor’ de Brasil, interpretada por Beatriz Consuelo, Cirley Franca, Oneide Craveiro, Arlete Saraiva, Ady Addor e Dennis Gray. Os cenários, muito elogiados, de Fernando Pamplona, mereceram aplausos unânimes de quantos assistiram aos espetáculos.
DOS novos nomes que surgiam alguns fariam carreira internacional sem precedentes até então. Beatriz tornou-se étoille do Grand Ballet du Marquis de Cuevas, Ady primeira-bailarina do American Ballet Theatre.
PARA Maria Angélica, primeira-bailarina da companhia de Paul Szilard e solista do American Ballet Theatre, criou sua versão de A Morte do Cisne. O número tornou-se um grande sucesso de Angélica.
NESSE ano o professor ministrou, por uma temporada, aulas adiantadas naEscola Cultural de Arte. Sandra Dieken também dava aulas ali.
NÓS, suas pequenas alunas, com autorização de Veltchek, ficávamos sentadinhas assistindo ao trabalho dos bailarinos. Não sabíamos estar testemunhando o início da carreira da maior bailarina-atriz do século XX: Márcia Haydée.
“POR favor, retire-se” – disse indignado o mestre – “quem lhe autorizou a olhar minha aula?”. “Professor, a senhora só entrou para tomar informações sobre os cursos de dança. Ocorre que ela é mais alta do que a parede divisória do estúdio“, respondeu a assustada secretária.
ELE era tolerante e amoroso com crianças, já o provara; mas era áspero e desconfiado com adultos que julgava estarem tentando copiá-lo.
PODIA também ser muito irreverente e bem humorado.
É Sandra quem lembra:
“Apesar de sua seriedade Veltchek gostava de fazer piadas com uma pitada de ironia. Com seu sotaque de estrangeiro costumava imitar os bailarinos Dirce Garro e Manoel Monteiro dançando, com o tango Jalousie, um duo sensual e acrobático; caricaturando o jeito de Monteiro, simpática figura de homem latino e bonitão, cantava e dançava a conhecida melodia provocando boas risadas nos bailarinos.”
AINDA em 1952 Veltchek realizou uma conferência sob o sugestivo título de Ballet-Dança Teatral. Aplaudidíssimo, conseguiu atrair numerosa assistência.
ILUSTRANDO suas palavras estavam as bailarinas Inês Litovski, Beatriz Bittencourt, Arthur Ferreira e Yellê Bittencourt “(…) além de uma aluna de Veltchek – a jovem Márcia Haydée, que foi a grande revelação da noite”, registrava a revista Rio-Ballet.
A temporada lírica de 1953 não se constituiu num grande sucesso para o Corpo de Baile, embora Veltchek tenha colhido um grande triunfo pessoal coreografando a Bacanal da ópera Sansão e Dalila.
DANÇADA brilhantemente por Leskova e Arthur Ferreira secundados pelo conjunto, “excelente“, revelou, mais uma vez, sua competência para explorar o melhor dos solistas e da companhia.
“VIBRANTE, dinâmico, sensual“, diziam os críticos.
É ainda daquele ano a criação de Composição Abstrata, “ballet fino e decorativo, onde a coreografia simples e inteligente pôs em relevo os talentos promissores dos executantes“, estreado em 1º de setembro sobre música de Vivaldi-Bach. Numa concepção de Sérgio Rodolfo Alves foi levado à cena com interpretações de Márcia Haydée, Regina Benevides e Yellê Bittencourt.
NAQUELA oportunidade, mais uma vez, a mágica do coreógrafo conseguira fazer com que artistas, na época tão inexperientes, conseguissem se apresentar com nível de profissionais de longa vivência e acabamento técnico.
O ballet seria, mais tarde, interpretado também por Ady Addor, Dicléia Ferreira e Aldo Lotufo.
NO final desse ano Veltchek seguiu para São Paulo para participar da banca examinadora do Ballet do IV Centenário.
ARACY Evans diz com carinho:
“Foi ele que deu os últimos retoques na variação de Pássaro Azul com a qual me submeti ao teste para ingressar na companhia“.
EM seguida foi contratado como pedagogo pela Prefeitura de São Paulo para ministrar cursos de formação para professores numa academia situada na Rua Itapetininga.
AINDA em 1953 Veltchek foi o coreógrafo do primeiro filme brasileiro em cores Destino e apuros.
DIRIGIDO por Ernesto Remani o filme contou com o desempenho de atores de grande renome do nosso meio teatral: Paulo Autran, Jayme Barcelos, Paulo Goulart e Hélio Souto.
DEIXANDO o Brasil, Veltchek seguiu para o Teatro S.O.D.R.E. de Montevidéu, onde permaneceu durante os anos de 1954 e 1955 como diretor e coreógrafo.
UIRAPURU foi novamente encenado na temporada de 1955, mas não se tem registro de sua presença no Municipal neste ano.
EM 1956, concretizando um de seus velhos sonhos, Veltchek foi a Salvador onde, a convite da Universidade da Bahia, ministrou aulas de dança e pronunciou uma conferência sobre ballet na Reitoria da referida Universidade.
A palestra foi ilustrada por sua aluna Ana Helena Mariani.
DE Salvador esperava seguir para o Brasil central, sul, norte e nordeste. Desejava, e nunca escondeu, manter contato estreito com todo o seu país de adoção. Havia passado por uma grande decepção: sua coreografia Tocata em dó de Bach, ballet do qual já concluíra o primeiro movimento a convite do Municipal, fora descartado da temporada. Só havia dinheiro para montar os ballets de Leonid Massine.
DISSE-LHE o diretor de então:
“SEU problema foi ter se naturalizado Veltchek. Se você ainda fosse estrangeiro, talvez a verba saísse” – Faro, Antonio José, A dança e seus principais construtores, p. 32.
SERÁ que já mudamos?
NESSE mesmo ano coreografou para a Associação de Ballet do Rio de Janeiro Prelúdios de Mignone, tendo como intérpretes principais Míriam Guimarães, Alice Colino, Dalal Achcar, Yellê Bittencourt, Ismael Guiser e Arthur Ferreira.
DIRIGIU ainda o grupo de bailarinos que participava dos espetáculos da Fundação Brasileira de Teatro no Teatro Dulcina. Entre os jovens em início de carreira estava Emílio Martins, hoje único coreólogo latino-americano credenciado pelo Royal Ballet de Londres para remontar La Fille Mal Gardée internacionalmente.
SEU espírito empreendedor fê-lo gravar no Brasil o primeiro e talvez único disco sobre aulas de ballet de que se tem notícia no país.
LANÇADO pela Mocambo, em Alta Fidelidade, o LP foi gravado em Recife com o título Aula de ballet. Na capa, num flagrante colhido durante uma aula ministrada por Veltchek no Teatro Santa Isabel, vê-se o mestre e as ‘moças-bailarinas’: Iara Ione Tabosa de Almeida, Nadja Naira Carvalho, Eliane Isis Vieira e Gerluce Amorim. Todas alunas de Flávia Barros, querida companheira que muito fez pelo ballet em Recife.
NO encarte a apresentação é de Paulo Fernando Craveiro.
EM 1958 Veltchek voltou a São Paulo para montar para Marília Franco e Joshey Leão Juno e Endimião. A amizade entre Marília e Veltchek nunca acabara.
EM 1959 Veltchek assumiu o cargo de diretor do Ballet Nacional da Venezuela e em 1960 foi contratado para atuar em Madri, onde voltou a trabalhar em 1965.
Em 1962, como convidado de honra do 1º Encontro de Escolas de Dança do Brasil promovido por Paschoal Carlos Magno, Veltchek esteve no Brasil novamente.
FOI a última, quem sabe a única, homenagem prestada pelo Brasil a esse filho postiço a quem devia uma de suas páginas mais gloriosas.
VELTCHEK retornou ao Municipal com coreógrafo convidado e professor em 1963 para remontar seus antigos sucessos La Valse e Pavana, de Ravel, e Quadros de uma Exposição.
MAS a última temporada do velho mestre foi difícil. As piadas de antes, algumas francamente fortes, já não existiam.
SEM apoio, desrespeitado por figuras importantes da companhia, Veltchek parecia a sombra do que fora.
O Brasil devia-lhe homenagens e reconhecimentos: pela sua idade, pela sua bagagem, pela sua contribuição para nossa terra e nossa dança. Porém ele retornava lutando para sobreviver, provavelmente com a sensação de que não era mais benvindo.
CONTANDO apenas com o respeito de alguns bailarinos, dentre os quais Sandra Dieken, Eleonora Oliosi, Aldo Lotufo, Décio Otero e Emílio Martins, ele se sentia no fim. Sua saúde declinava sensivelmente.
CUMPRIU em 1964 seu segundo ano de contrato. Para Oliosi e Lotufo criou o Grand-pas-de-deux de Benjamin Britten, uma de suas últimas alegrias.
MUSICAL, preciso, usou com muito brilho as presenças e as qualidades dos bailarinos, numa derradeira demonstração de sua capacidade, mesmo alquebrado e doente.
NO mesmo programa apresentou um ballet que agradou muito: Divertimentos, sobre música de Jacques Ibert.
NESSE trabalho interpretei A Acrobata, ao lado de Emílio e do saudoso companheiro Solon de Almeida.
APÓS o espetáculo um conhecido coreógrafo veio falar-me no palco:
“Assistindo-a em Divertimentos entendi porque Dalal Achcar me avisou para observá-la“.
ERA seu último contato conosco antes de morrer, mas o maior sucesso da temporada ainda foi seu.
***
O Brasil e Veltchek:
NA esteira na Semana de Arte Moderna de São Paulo, os pioneiros da dança deram início, na década de trinta, à busca de elementos autênticos da cultura brasileira para, conferindo-lhes um tratamento cênico, participar do movimento liderado pela música, literatura e artes plásticas.
VELTCHEK foi dos que mais se envolveu nesse processo.
OS fragmentos de críticas selecionados revelam o quanto a paixão pelo nosso país concorreu para que sua criação se tornasse mais madura e significativa.
TIMIDAMENTE, de início, ele foi, gradativamente, compreendendo e conseguindo interpretar um povo com cultura muito distante da sua, mas que lhe encantava.
OS senões apontados no começo foram sendo substituídas por análises consagradoras de seus trabalhos, principalmente os realizados para o Conjunto Coreográfico Brasileiro, onde, sem dúvida, ele teve absoluta liberdade para expandir suas concepções e expressar seu respeito e amor ao Brasil.
O batismo brasileiro de Veltchek deu-se em Maracatu do Chico-Rei de Olenewa.
DANÇOU-O logo na primeira temporada do Theatro Municipal, em 1939.
A primeira versão de Uirapuru estreou em São Paulo. Sua encenação no Municipal do Rio deu-se em 1943.
GROCK, de O Cruzeiro, fez várias restrições ao ballet, elogiando apenas o desempenho repleto de graça natural e flexibilidade de Eros Volúsia como a Índia Bonita.
VOLÚSIA também interpretou os papéis de Escrava e de Moleque em Leilão de Mignone, ballet no qual Veltchek, além da coreografia, fez o papel de Escravo.
FESTA na Roça, da mesma temporada, também não foi bem recebido. Afirmaram então que, apesar da partitura maravilhosa e plena de brasilidade de José Siqueira, de cantigas de violeiros, polcas, cocos, shottishes e desafios cantados do Brasil tradicional, seu argumento não funcionara como ballet.
O mesmo crítico respaldou-se até em Mário de Andrade quando afirmava que ‘o exótico, em teatro fatiga pavorosamente’.
DISSE:
“(…) O tratamento coreográfico utilizado por Veltchek, baseado em Baile dos Graduados de David Lichine, não se constituiu na melhor maneira de traduzir nossa cultura popular“.
O 3º ato, entretanto, contando com menor participação de figurantes considerados desnecessários, foi elogiado por Grock por sua concisão e dinâmica.
INSISTINDO no elemento nacional Veltchek coreografou ainda Meia Canha, número dos mais bem sucedidos daquela temporada.
O experiente e lúcido Mário Nunes alertou:
“SE Veltchek ainda pouco sabe dos usos e costumes do Brasil, apesar dos esforços para dar a impressão de um baile na roça situado em qualquer ponto do nosso território, Volúsia, uma estudiosa do assunto a quem não faltam inspiração, talento e entusiasmo, ainda não colheu frutos concretos do seu trabalho em forma de criação, mas tão somente estudos dignos de nota e merecedores de aplausos“.
TRATAVA-SE do caminho indispensável a ser percorrido, e do qual não se pode fugir, para que artistas cênicos em busca do sotaque brasileiro para espetáculos teatrais de dança interpretassem esse falar.
E Veltchek conseguiu se encontrar com o Brasil através de sua experiência com elementos do próprio povo, de seres privilegiados – as crianças do CCB e Rondon – junto aos quais conheceu e até ensinou a essência deste país, reconheceram mais tarde os críticos.
PASSADOS quatro anos das restrições à temporada de 1943, com Veltchek já à frente do ballet da União das Operárias de Jesus, as notícias, reportagens e críticas enaltecedoras se sucederam, ao longo de anos, em números que impressionam.
GROCK referindo-se ao Uirapuru que criticara outrora dizia:
“(…) EM Uirapuru, além de Yellê, Teresa foi uma esquiva Índia Caçadora e Nílton, um Índio Bonito maravilhoso; e aí a eficiência de todo o conjunto orientado por Veltchek ficou mais uma vez excelentemente comprovada, dentro do belo cenário de Angelo Lazary (…)”.
NESTE outro trecho da carta-declaração de Monteiro Lobato, o consagrado escritor carimbou, e o fez com seu brilho pessoal e a legitimidade de sua própria obra, a verdade do Brasil de Veltchek em sua apaixonada declaração de fé na arte do povo brasileiro:
“(…) EM “Sinhô do Bonfim”, um arranjo folclórico, Veltchek alça-se a mais suave poesia. O tema, é coisa mínima: uma igreja da Bahia vende um santo milagroso muito cortejado pela população nativa. Antes da grande festa anual, baianinhas do povo, descalças, humildes, varrem e lavam o templo – é na estilização de Veltchek que pela primeira vez no mundo da arte aparecem musicadas e coreografadas varredeiras e lavadeiras de assoalho. E trazidas pela fina música de Guarnieri entram dançando os portadores de quadros votivos, que depositam aos pés do santo. E entram depois as portadoras de flores, em andor e vasos de cabeça, à baiana – verdadeiras canéforas da terra dos cocos, e dançam em harmonioso conjunto num quadro contínuo de movimentos rítmicos de encantadora beleza. Súbito – e aqui o gênio de Veltchek solta uma das sua faíscas – entra uma pobre negrinha assustada, guia de um cego que vem pedir um milagre ao santo. O aparecimento em cena dessa humilde figurinha, com seus desordenados movimentos de braços, no seu vestidinho de riscado e descalça, pôs uma curiosa nota de naturalismo ingênuo naquele arranjo em que tudo é estilização. Uma nota que comove. (…) Sinhô do Bonfim constitui uma perfeita obra darte, riquíssima de poesia popular, e vale como lição do que podemos fazer com os temas populares – o que podemos fazer quando há gênio, ai!…”
BERKOVITZ publicou para o Brazil Herald:
“A história e a música são ambas ideais para um ballet, ainda que a extrema simplicidade da história apresente grandes dificuldades para o coreógrafo. Não posso dizer que Vaslav Veltchek superou estas dificuldades completamente. A dança das índias donzelas é, algumas vezes, um tanto banal, há demasiada batidas dos pés e palmas rítmicas. Mas todo o ballet repousa numa certa atmosfera de mistério e suspense que são muito bem sugeridas pela música. E, apesar de tudo, Uirapuru foi um espetáculo muito agradável e tocante, e o próprio Villa-Lobos disse-me que estava muito satisfeito com a interpretação que Vaslav Veltchek deu a sua música.
EM junho, no mesmo jornal ele declarou:
“ENTÃO vieram os dois ballets brasileiros, ambos da melhor qualidade. Primeiro As Três Irmãs com música de Fructuoso Viianna. A música agradável, o espirito dançante de Theresa Bittencourt, Orlanda Saturnino e Ameliia dos Santos e os engraçados e delicados costumes de Eros Gonçalves fizeram deste um dos melhores itens do repertório do Conjunto Coreográfico Brasileiro. O segundo ballet brasileiro, feito sobre música de Villa-Lobos e contendo algumas das melhores melodias dos grandes compositores brasileiros, como por exemplo a linda A maré encheu do Guia Prático, é chamada Alegria na Roça e mostra um aspecto feliz da vida típica dos “caboclos”. Tem algumas esplêndidas estilizações de danças brasileiras e tanto este ballet quanto o de Fructuoso Vianna, como é interpretado pelas crianças encantará audiências no mundo todo“.
EURICO Nogueira França afirmou no Correio da Manhã a propósito dos Saraus da Cultura Artística:
“(…) EM Uirapuru, um “ballet” onde a participação do conjunto, a coreografia, o cenário e os vestuários contribuem para um esplêndido resultado, é de sublinhar a força a um tempo lírica e panteísta, da partitura de Villa-Lobos. As atraentes marcações coreográficas de Vaslav Veltchek correspondem ao pensamento do grande compositor, que musicalmente descreve a lenda tecida em torno do nosso pássaro do norte – o Uirapuru. (…) A partitura do Uirapuru (“ballet” dedicado a Serge Lifar) faz “pendant” e contrasta com outro “ballet” de Villa-Lobos – o Amazonas. Tanto a sua poesia, como a sua aspereza própria, foram eficazmente sublinhados pelos bailarinos da União das Operárias de
Jesus (…)”.
ANDRADE Muricy escreveu para o Folhetim do Jornal do Commercio:
“(…) SINHÔ do Bonfim sintetiza numa festa sertaneja tradicional alguns traços particulares caraterísticos. O quadro é pitoresco. Procuram-se formas e cores da arte popular humilde. (…) As Valsas de Esquina, sobre algumas da conhecida série de Francisco Mignone, foram tratadas com felicidade por Veltchek, que criou para elas uma coreografia vivaz e variada. Arte sintética, sem ser sistemática. (…) Um êxito, um achado. A deliciosa música de Fructuoso Vianna vai como uma luva na coreografia de Veltchek“.
EDMUNDO Lys colocou em O Globo:
“FECHOU a noite encantadora que nos deu o C.C.B., o Uirapuru de Villa-Lobos. A concepção dançante de Veltchek é bem diferente da que Lifar deu à primeira versão deste “ballet”. Achamos feliz a idéia de aproveitar mais os conjuntos, pois que mais no espírito das dansas indígenas. A temporada do Conjunto Coreográfico Brasileiro vai prosseguir sob os melhores augúrios, depois dessa estréia triunfal’”.
E Ayres de Andrade opinou em O Jornal:
“(…) PARA terminar, assistiu-se à mais bonita das versões que mereceu até aqui o bailado Uirapuru de Villa-Lobos“.
ENQUANTO isso, Antonio Bento na coluna As Artes do Diário Carioca afirmava:
“NO Uirapuru de Villa-Lobos, ainda uma vez, iria afirmar-se o talento de Veltchek (…)”.
A Noite publicou:
“(…) SINHÔ do Bonfim e Valsas de Esquina de Mignone, se nos afiguraram interessantíssimas na coreografia de Veltheck. O primeiro, muito sugestivo, deu ocasião a que aparecessem em cena baianinhas, cujos trajes chamaram a atenção pela beleza e bom gosto. (…) Valsa de Esquina, que figurou no repertório do Bailado da Juventude apareceu-nos agora valorizado em sua concepção e superiormente dançado“.
ANGELO Guido no Diário de Notícias de Porto Alegre fez coro: “(…) Depois dos grandes momentos de emoção proporcionados pelos Quadros de uma Exposição, veio o envolvente encanto de Uirapuru, bailado de Villa-Lobos em que da música e da coreografia se evola o fascínio evocativo do ambiente mágico da lenda (…) Batucagê é outra admirável criação do notável mestre da coreografia prof. Vaslav Veltchek“.
O EL Mundo de Buenos Aires publicou:
“EM seguida subiu à cena o ballet Uirapuru, de Villa-Lobos, em uma versão coreográfica mais sóbria que foi oferecida há doze anos no Colón, mas notavelmente expressiva, magnífica em sua construção rítimica, e perfeita em seu estilo. (…) Entre os “divertissements” se destacou Batucagê uma cena do Carnaval do Rio, magnificamente colorida e buliçosa. (…) Nas Valsas de Esquina de Mignone, sobre cenografia de Anísio Medeiros, se relatam movimentos de vistosa realização rítmica. ( ..) O público tributou aos jovens intérpretes e a seu diretor, uma verdadeira ovação“.
EL Bien Publico de Montevidéu reconheceu:
“(…) Uirapuru, um ballet folclórico indigenista com música de Villa-Lobos, nos deu outra mostra da alta qualidade do ballet. Este número foi muito bem apresentado e muito bem dançado, com um claro sentido do ballet e com uma bela e poética substância folclórica“.
MAS nada falou mais alto do que as impressões registradas por Paschoal, personagem de tal grandeza para a vida cultural do Brasil que por si consagraria um artista.
“O Uirapuru de Villa-Lobos constituiu o fecho do programa. Esse ballet brasileiro, já apresentado ao público em outros espetáculos, teve belíssima interpretação acima de qualquer crítica. Ao Mestre, coreógrafo e diretor Veltchek a gratidão dos que esperavam um grande ballet para o Brasil“.
UM triste epílogo:
TRISTE constatar mas Veltchek estava na miséria.
POR absoluta falta de ter sequer onde morar, foi viver na Aldeia de Arcozelo, uma espécie de refúgio para artistas idealizado por Paschoal.
MAS ele estava morrendo.
SEUS últimos dias passou-os internado na Santa Casa da Misericórdia.
“AJUDOU-O, neste último momento a figura maravilhosa e humana de Madeleine Rosay”
explica Dieken.
PELO seu programa semanal de televisão Arabesque a bailarina fez um apelo aos companheiros e admiradores do mestre.
MAS as contribuições foram pequenas; bailarinos e artistas, em geral, sempre foram mal remunerados no Brasil.
POR pouco Veltchek não foi enterrado como indigente, um registro cruel e até irônico para um artista que fora o escultor de tantos destinos, um Pigmalião na vida de tantas crianças carentes.
EM São Paulo Aracy Evans e outros ex-alunos montaram um espetáculo cuja renda foi revertida para Veltchek e Dionísia.
É ainda Dieken quem nos envia da Alemanha reportagens póstumas sobre o inesquecível mestre.
O crítico Renzo Massarani publicou:
“Desapareceu o coreógrafo tcheco-eslovaco Vaslav Veltchek, nascido em 1896. Desapareceu, indigente, na Santa Casa da Misericórdia; seu caixão, conforme noticiou o Jornal do Brasil “foi dos mais ordinários e tão pequeno que não permitiu sequer que o corpo fosse enterrado com os sapatos nos pés”. Entretanto, este artista vivera anos de glória autêntica. (…) Criando o Uirapuru de Heitor Villa-Lobos, foi o primeiro e possivelmente o único que soube seriamente estudar e aproveitar artisticamente os passos populares brasileiros. Nos longos anos de sua presença fecunda no teatro, criou também um grupo valoroso de alunas (tais como Sandra Dieken, Yellê Bittencourt e Márcia Haydée) e deu ao conjunto uma dignidade que, depois, devia rapidamente perder-se. Veltchek viajou novamente: São Paulo, Iugoslávia. Itália. Quando finalmente voltou encontrei-o num hotel da Rua Paissandu, feliz e entusiasta; fizera muitos planos que logo publiquei numa entrevista que infelizmente devia ser a última. Com efeito, cansado e já então gravemente enfermo, não soube mais impor-se ao conjunto que se estava esgotando em exibições cada vez mais pobres e rotineiras. Afastou-se do teatro. Desapareceu. E agora, só por acaso, soube que não abandonara o Rio e que desaparecera aqui, tão tristemente perdido na cidade que o esquecera“.
NUM jornal não identificado de 04 de janeiro de 1968 podemos ler:
“APENAS 26 pessoas, entre milhares que o aplaudiram em todo o mundo como bailarino e coreógrafo, acompanharam ontem o enterro de Vaslav Veltchek. Pobre, depois de uma vida intensa dedicada à sua arte, o bom Veltchek – como era chamado – foi trazido de Madri ultimamente pelos seus amigos brasileiros, depois de esquecido pelo público e pelas autoridades, quando se encontrava em precárias condições de saúde. (…) Não é verdade que morreu como indigente – segundo o Embaixador Paschoal Carlos Magno (…)”.
DESMENTIDOS posteriores não mudam uma realidade indigna e desumana.
A mesma situação aflitiva persiste em relação a inúmeros artistas que contribuíram, de forma exemplar, para a cultura e a educação de nosso país.
RIO de Janeiro, 1963:
VELTCHEK foi sepultado no número 52.955 da quadra 53, do Cemitério de São Francisco Xavier.
RIO de Janeiro, 2001:
“CAMINADA, o que você faz aí no camarim? O professor Veltchek está lhe chamando na sala. Deseja observá-la mais uma vez. Vai menina, você entrou outro dia e já vai ganhar um solo. O que está esperando?”, chamou o chefe do corpo de baile Sebastião Araújo.
FOI o primeiro solo que dancei dado por um coreógrafo convidado no Theatro Municipal: As sofisticadas de La Valse.
“PROFESSOR Vaslav Veltchek, muito obrigada! Foi um privilégio tê-lo conhecido, ter dançado sob sua direção. É uma honra falar de sua vida. Tomara Deus, eu possa ter correspondido escrevendo como espero ter conseguido fazer, um dia, dançando. Só que naquela oportunidade, como bailarina, eu contei com sua orientação e sua estrela“.
Eliana Caminada
Bibliografia:
CAMINADA, Eliana, História da Dança – Evolução Cultural. Editora Sprint, Rio de Janeiro, 1999.
FARO, Antônio José, A Dança no Brasil e seus construtores. Fundação Nacional de Artes Cênicas, Ministério da Cultura, Rio de Janeiro, 1988.
FARO, Antônio José e Sampaio, Luiz Paulo, Dicionário de Balé e Dança. Jorge Zahar Editora, Rio de Janeiro, 1989.
PAVLOVA, Adriana, Maria Olenewa, a Sacerdotisa do Ritmo. Funarte, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.
PEREIRA, Roberto, Tatiana Leskova, nacionalidade bailarina. Funarte, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.
PORTINARI, Maribel, Dennis Gray, Eterno na Dança. Funarte, Theatro Municipal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.
SUCENA, Eduardo, A dança teatral no Brasil. Fundação Nacional de Artes Cênicas, Ministério da Cultura, Rio de Janeiro, 1988.
Enciclopédia Barsa.
PELA colaboração e pela primeira revisão deste texto nossos eternos agradecimentos a Henrique Samyns Marques e Lina Arão, generosos amigos de amor pela arte e de encanto pela dança.
PELOS depoimentos e pela colaboração, nossos agradecimentos aos bailarinos: Aracy Evans, Helga Loreida, Jacy Rhormens, Maria Pia Finocchio, Marília Franco, Sandra Dieken, Armando Nesi e Yellê Bittencourt.
PELOS depoimentos nossos agradecimentos às bailarinas Eleonora Oliosi e Míriam Guimarães a quem também agradecemos pela cessão de fotos.
PELA colaboração nossos agradecimentos ao professor Roberto Pereira.
NOSSOS especiais agradecimentos a Amélia Moreira e Sandra Dieken pelo empenho em encontrar e ceder todo o material impresso, reportagens, fotos, programas, cartas, correspondência pela Internet, revelando-se incansáveis na tarefa de, junto comigo, participar da reconstrução da vida de Vaslav Veltchek.
PELA cessão da coleção da revista O Brasil Musical nossos agradecimentos à pedagoga Maria Lúcia Galvão.
PELA cessão da coleção da revista Rio-Ballet nossos agradecimentos ao bailarino e coreólogo Emílio Martins.
PELA cessão de números da coleção da revista Rio-Ballet nossos agradecimentos à bailarina Zeni Lacerda.
PELAS informações sobre o disco gravado por Veltchek nossos agradecimentos à professora Flávia Barros.