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Um Apólogo (ou O rei continua nu?)

julho 16, 2012

 

 

 

 

 

 

Este artigo foi escrito originalmente para o jornal A Notícia, de Santa Catarina, e publicado posteriormente no site Portal da Família. Na época, a extinta TVE e a TV Cultura transmitiam a excelente série “Contos da meia-noite”.

No caso de “Um Apólogo”, um dos contos selecionados, as emissoras nos brindaram – e a Machado de Assis – com o talento e o brilho pessoal da grande atriz Marília Pêra.

Lamentavelmente, o que fazia sentido naquele momento, assim como já fizera quando Machado escreveu esta obra-prima, permanece inalterado. Temo que pelo total desconhecimento e falta de respeito à dança, situações como a descrita se eternizem, contribuindo para o enterro da verdadeira dança a que chamamos Arte.

Era mais ou menos assim, o artigo:

“Relendo Machado de Assis, que mestre maior não existe, abri o volume dois de sua obra completa, na página com o mesmo título deste artigo. Não por acaso eu o selecionara. O texto, que envolve uma agulha, uma linha e um alfinete, me lembrou, de imediato, inúmeras situações conhecidas. Já no fim do conto a linha pergunta à agulha:

“-… Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá? Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: – Anda, aprende tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar a vida…Fazes como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam fico.” E Machado conclui: “Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse: – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!”

Suponho que o mesmo ele teria dito a muita agulha com carreira legítima, sempre a abrir caminho para linhas oportunistas. E é por isso que muitos profissionais se alfinetam; para que sair de onde estão, se ao final da história resta-lhes o insignificante papel de coadjuvante de sua própria história?

É verdade que existem agulhas e agulhas: há as finíssimas, de fundo estreito, só servem para linhas requintadas; há as rústicas, de crochê, de tricô, de tapeçaria, aceitam até linha do tipo barbante, são ótimas para linhas de pura lã. E há as agulhas péssimas, tortas, enferrujadas, grosseiras; pelos seus fundos passam até mesmo fio dental de má qualidade. Não servem para perfurar nem brim, muito menos tecidos delicados. Mas as linhas do poder, as que menos costuram, dão-se às mil maravilhas com as agulhas.

À custa do caminho que essas agulhas, mal ou bem, abrem, linhas politicamente habilidosas integram comissões, mudam a grafia internacionalmente adotada da palavra ballet num país de estrangeirismos inaceitáveis, distribuem prêmios, assinam manuais que deseducam, distorcem a história, programam dança pelas tevês sem qualquer critério (adoram ilustrar a dança acadêmica com o que de pior existe, uma vez que não entendem nada do assunto), forjam gênios, enfim, exercem uma atividade de dar inveja até às poucas agulhas que, sabe-se lá como, conseguem acompanhar o traje da baronesa.

Machado de Assis só não falou dos tecidos. Quem sabe por respeito à fábula “O alfaiate e o rei”. Para os que não a conhecem, esse rei encomendou um costume aos mais famosos “alfaiates” da época. Percebendo que o rei nada entendia de coisa alguma, muito menos de alta costura, os espertalhões decretaram: “Só os inteligentes conseguem enxergar a roupa nova do rei, uma verdadeira obra de arte”. E assim, fingindo costurar um traje com agulhas, linhas e tecidos que não existiam fizeram o tal rei sair nu.

Na fábula a ingenuidade e a sinceridade de uma criança aponta a verdade da nudez real. Hoje, quando tantas agulhas, linhas, alfinetes e tecidos sequer existem, são inventados, ainda que lamentavelmente visíveis, quem terá coragem de gritar que muitos teatrólogos e atores investidos de um súbito conhecimento de dança, coreógrafos da mente, analistas neuroniais, curadores, doutores, críticos, performers da nova era, bailarinos desinteressados e ignorantes de sua profissão estão nus?

Eu, pessoalmente, não tenho vocação para alfinete; amo essa dança chamada ballet de forma muito visceral para ficar, filosoficamente, contemplando seu enterro, programado por linhas mal intencionadas, auxiliadas por agulhas iludidas. Também nunca consegui ser linha de espécie alguma. Linhas precisam conviver com o Poder. Eis que sou absolutamente incapaz de transitar com poderosos.

Concluo admitindo, melancolicamente, como o professor de melancolia de Machado de Assis, que não sei onde me encaixar. Mesmo admitindo que precisamos tanto da linha de nylon, forte mas ponderada, segura mas delicada; e de agulhas generosas, dispostas a abrir caminhos para companheiros de todas os segmentos de dança.